O problema da primeira edição
O que configura uma primeira edição? Na maioria dos casos, a resposta é simples, evidente: aquela que, em termos cronológicos, apareceu primeiro. A primeira edição de Quarto de despejo, de Carolina de Jesus, por exemplo, é de 1960 e foi publicada pela editora e livraria Francisco Alves, que também produziria uma segunda edição em 1963, após estrondoso sucesso e diversas reimpressões. Entre uma e outra, porém, o livro seria traduzido e publicado em treze idiomas, de modo que cada uma dessas edições estrangeiras configuram, cada qual em seu país ou região, uma primeira edição própria. É comum que se fale em “primeira edição francesa” ou “catalã”, por exemplo. Portanto, a primeira edição em português — colocando-se em pauta também as edições para o exterior — é a primeira edição brasileira, mas também, levando-se em conta a história individual do livro, algo como uma primeira edição “original”, uma vez que é a partir dela que todas as demais, nacionais ou não, tomaram forma.
A coisa da primeira edição, assim, pode se tornar um pouco mais complicada. Cabe lembrar que, para configurar uma nova edição, não basta uma reimpressão, mesmo que feita muitos anos depois da primeira: é necessária uma mudança na composição da obra. Por composição, entendo, conforme explica Gérard Genette em seu livro Paratextos editoriais, aquilo que transforma texto em livro, isto é, a escolha de caracteres, diagramação, capa etc. Livros que são comumente escolhidos como leitura obrigatória para vestibulares, por exemplo, recebem, não raro, dezenas de reimpressões, nas quais, entretanto, a composição (e, por conseguinte, o número da edição) permanece a mesma. Exemplares de reimpressões diferentes são, essencialmente, idênticos, com exceção ao número da própria reimpressão, uma possível alteração na equipe técnica que trabalhou no livro ou mesmo alguma eventual correção de texto que não havia sido notada até então. Pequenos detalhes, nada mais. Inclusive, o próprio ISBN – número único e intransferível de cada livro – permanece o mesmo em todas as reimpressões, o que não acontece no caso de uma edição nova.
Isso tudo é bastante minucioso e tem uma razão para que disponha de tantos códigos. Livros publicados com autores em vida ou, ao menos, com seu direito autoral ainda vigente, possuem em geral um afastamento temporal razoável entre edições. Isto ocorre por questões comerciais em torno do que se pode chamar de “ciclo de vida” do livro, que, assim como qualquer outra mercadoria nova, demanda um certo tempo para estabelecer-se no mercado e ser recebido pelo público que venha a consumi-lo. Assim, salvo os casos de edições especiais, ilustradas ou que tragam em si qualquer outro tipo de elemento distintivo – como de celebração ou efeméride –, é apenas quando a editora entende que o ciclo de determinada obra está próximo do fim que uma nova edição passa a ser cogitada. Tal decisão depende, é claro, de seu sucesso comercial inicial, da relação com os autores ou com quem mantém os direitos de publicação e demais aspectos do negócio, que fogem ao escopo deste texto.
Um exemplo de obra com diversos ciclos – e que, inclusive, está prestes a começar um novo em função de uma efeméride –, é Estorvo. Inicialmente publicado em 1991, o primeiro romance de Chico Buarque recebeu em 2021 uma edição comemorativa de trinta anos, naturalmente com composição distinta da anterior, bem como comentários de especialistas. É de se esperar, nesse cenário, que uma nova edição, se existir, leve um bom número de anos para ser publicada.
O mesmo não acontece, no entanto, com obras em domínio público. Como nesses casos é possível que diversas editoras, simultaneamente, mantenham versões dessas obras em seus catálogos, o número da edição se torna informação vital para situar com precisão qual versão está sendo lida. Livros como Dom Casmurro, de Machado de Assis, e O cortiço, de Aluísio de Azevedo, por exemplo, contam com mais de duzentas edições, apenas no Brasil. Uma análise ecdótica de uma obra — isto é, comparativa nos termos de suas diferentes versões —, nessas circunstâncias, será muito mais extensa do que a de outra ainda conectada ao seu ciclo de vida monopolizado por uma só editora.
Há casos, entretanto, cujo próprio esforço de estabelecer a primeira edição enfrenta alguns problemas. Analisarei a seguir um deles, no qual, inclusive, a definição acerca da primeira edição se mostra indispensável para a contextualização da obra, uma vez que tais problemas têm uma origem, como veremos, intimamente conectada aos eventos políticos da época. Trata-se de Cultura posta em questão, de Ferreira Gullar.
Em uma pesquisa nas bases de dados de bibliotecas públicas e sebos online, rapidamente encontra-se a suposta primeira edição, datada de 1965, e publicada pela editora Civilização Brasileira. E, ao observar os paratextos do livro, principalmente prefácio (do próprio autor) e orelha (de Leandro Konder), fica clara a sua função de fincar a obra enquanto parte das discussões sobre cultura da sua própria época. Tal esforço é comum em livros até hoje, principalmente nos de não ficção, uma vez que servem para convencer um eventual consumidor da pertinência das ideias propostas ali. Tudo, portanto, conforme o esperado.
Ocorre que houve uma edição anterior, não mencionada em nenhum lugar da versão da Civilização Brasileira. Para se chegar a ela, entretanto, é necessário ir além do próprio livro, buscar informações e, até mesmo, questionar o que exatamente se quer dizer por publicação.
Logo no primeiro capítulo da obra, ao elogiar a atuação de entidades como a União Nacional dos Estudantes (UNE), o Centro Popular de Cultura (CPC) e o Movimento de Cultura Popular (MCP), Gullar inseriu uma nota de rodapé, a única em todo livro a fazer menção ao golpe de 1964 ou a qualquer evento posterior: “O golpe militar de 1º de abril fechou todas essas entidades e prendeu ou persegue seus integrantes.” Entretanto, em 3 de junho de 1964, quando o livro ainda estava em processo de produção, os jornais Diário Carioca e Diário da Noite imprimiram nota idêntica, contendo uma outra informação que deveria ter sido incluída nessa edição de Cultura posta em questão. Respectivamente:
Tais dizeres não aparecem na obra, seja na capa (abaixo) ou em qualquer outro espaço. O livro tampouco sairia nos “próximos dias”: seriam necessários vários meses para que chegasse às livrarias, o que ocorreu, como vimos, apenas no ano seguinte.
Outra notícia, agora no Jornal do Brasil de 22 de julho de 1964, trouxe informações adicionais sobre o que teria ocorrido, incluindo um ácido destaque à palavra “conseguiu”:
Há, portanto, “outra primeira edição” de Cultura posta em questão, cuja gênese é muito rica em material histórico e sobre a qual comentarei em textos futuros para esta coluna. Por ora, é importante ressaltar que, em termos de definição específica de cada edição, estamos em um impasse. É possível recorrer rapidamente ao argumento cronológico e, a partir disso, estabelecer que, se a edição da Editora Universitária da UNE, citada na nota do Jornal do Brasil, surgiu ainda em 1964, trata-se da primeira e fim de papo. Sob esse raciocínio, a edição da Civilização Brasileira seria simplesmente a segunda, mesmo que fosse necessário, à época, apresentar-se como a primeira. Não há nenhum erro factual neste raciocínio.
Entretanto, um aprofundamento um pouco maior nos acontecimentos da época mostrará rapidamente que ele não contempla todo o sucedido. É preciso ter em conta, como a nota no Jornal do Brasil já adianta, em certo sentido, que a edição da Editora Universitária não chegou às livrarias. Isto não quer dizer, porém, que não houve nenhuma distribuição e/ou comercialização. ,Dois eventos de pré-lançamento foram organizados — um em São Luís e outro no Recife — entre fevereiro e março de 1964, ambos com a presença de Gullar e de outros agentes importantes do campo cultural. Neles, foram distribuídos exemplares do livro, ainda que seja difícil precisar quantos.
O espaço que essa edição não alcançou foi o das livrarias. Toda a tiragem remanescente da versão da Editora Universitária de Cultura posta em questão estava na sede da UNE, no Rio de Janeiro, aguardando o evento oficial de lançamento, a ser realizado junto com a inauguração do Teatro da própria UNE. Ambos estavam agendados para o dia 20 de abril de 1964. Como se sabe, o golpe veio antes e, durante os eventos que marcaram o seu desenrolar nas ruas, a sede da UNE foi incendiada e a tiragem da Editora Universitária, por conseguinte, perdida.
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Publicar diz respeito a levar ao público. Quando se pensa em um livro, não se trata apenas de imprimi-lo, mas de disponibilizá-lo aos potenciais leitores. Evidentemente, o ocorrido com a edição de Cultura posta em questão pela Editora Universitária passou longe de ser uma decisão deliberada que dificultasse tal disponibilização, mas, em certo sentido, o problema continua o mesmo. É fato, também, que editora e autor fizeram diversos esforços para divulgar a obra, o que incluiu, como vimos, eventos de pré-lançamento com cobertura dos jornais e presença de agentes importantes para os temas ali debatidos. Qual seria, enfim, o status da edição da Editora Universitária?
Para mim, é impossível não as considerar, tanto a edição da Editora Universitária quanto da Civilização Brasileira, como “originais”. Mais do que isso, ambas são, cada qual a seu modo, a “primeira” edição. Se, por um lado, é fato que a edição de 2002 pela editora José Olympio – a única posterior às aqui citadas – baseou sua edição na versão da Civilização Brasileira, o mesmo se aplica quanto a esta ter tomado forma a partir do texto da Editora Universitária. A edição da Civilização Brasileira é, por si só, um ato de resposta à violenta supressão da anterior. Ambas compõem, assim, a versão consagrada de Cultura posta em questão no campo editorial: uma com ciclo parcial de publicação; a outra com o caminho até o potencial leitor completamente trilhado.
Porém, não são edições iguais. Para distingui-las, será preciso dar um zoom na disciplina de crítica textual e novamente tomar emprestadas da ecdótica as ferramentas para definir os diferentes tipos de edição. A versão da Editora Universitária, assim, configura, nos termos de José Pereira da Silva, a edição príncipe de Cultura posta em questão, isto é, aquela que contém a versão mais antiga do texto; já a edição da Civilização Brasileira corresponde tanto à edição corrente – aquela que leva ao leitor a versão comercialmente estabelecida de um texto –, quanto à edição definitiva – aquela eleita pelo próprio autor como a versão final.
Assim, a aparentemente simples definição acerca de uma primeira edição tem suas complicações. É justamente nesses impasses, entretanto, que as rachaduras ocasionadas por eventos históricos traumáticos – mesmo que pequenas, como o sumiço violento da tiragem de um livro – podem trazer à tona diferentes perspectivas que nos ajudem a ler um período turbulento como o Brasil dos primeiros anos da década de 1960. E algumas dessas rachaduras continuam intactas: até hoje, com anos de pesquisa a fio, eu nunca encontrei um exemplar de Cultura posta em questão pela Editora Universitária da UNE.
Agradeço a Lucas de Sena Lima pela pré-leitura deste texto e pelos valiosíssimos comentários.
E não entram nessa contagem versões de circulação por fora das livrarias, como edições de escolas e cursinhos.
“Do ‘questionamento’ da cultura brasileira contemporânea por Gullar, resultou um livro vigoroso, lúcido e necessariamente polêmico, escrito com admirável ausência de vaidade ou esnobismo. Independentemente de aceitarmos ou não todas as suas formulações (por sua natureza e seus propósitos, não é livro que se pretenda impor como expressão total da Verdade), já não poderemos passar sem ele. Possam todos os autênticos intelectuais brasileiros ter oportunidade de lê-lo, com urgência!” KONDER, Leandro. [Orelha do livro]. In: Cultura posta em questão, 1965.
Cultura posta em questão, p. 5 [nota de rodapé].
Durante os eventos que marcaram o golpe, a sede da UNE foi incendiada e a tiragem da Editora Universitária, por conseguinte, perdida.
BIBLIOGRAFIA
ARRUDA, Aline Alves. Carolina Maria de Jesus: projeto literário e edição crítica de um romance inédito. 2015. Tese (Doutorado em Letras). Faculdade de Letras. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. 257 p.
GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. Trad. Álvaro Faleiros. Cotia: Ateliê Editorial, 2009. Col. Artes do Livro, v. 7. ISBN 9788574804583. 369 p.
GULLAR, Ferreira. Cultura posta em questão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. 125 p.
SILVA, José Pereira da. A ecdótica: arte e técnica da edição de textos.
FONTES DA IMPRENSA
CAMPO menor. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 3 jun. 1964, p. 3.
CAMPO menor. Diário da Noite, Rio de Janeiro, 3 jun. 1964, p. 2.
LANCE livre. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 jul. 1964, p. 8.
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