Os inimigos dos livros
Atualizado: 8 de ago. de 2023
Quando se fala em livros banidos ou censurados, a imagem mais comum que os historiadores vão lembrar é a da “fogueira nazista” de 1933. Em abril desse ano, a Associação Nazista Estudantil Alemã organizou uma campanha nacional, chamada de “Ato contra o espírito não germânico”, com o objetivo de promover a “depuração” literária pelo fogo. Então, na fatídica noite de 10 de maio de 1933, estudantes de direita marcharam à luz de tochas em 34 cidades universitárias na Alemanha, exigindo que a censura “contra o espírito não alemão” fosse implementada. Além deles, participaram da cerimônia – que remetia às caças contra as “bruxas” medievais –, oficiais nazistas do alto escalão, professores e reitores universitários. Muitos destes convidados a discursar para os participantes e espectadores. Nessas cerimônias grandiosas – ocorridas em Berlin –, cerca de 40 mil pessoas responderam à convocação da Associação Nazista Estudantil Alemã. A multidão lançava os livros “indesejáveis” em grandes fogueiras sob o som de bandas de música. Cerca de 25 mil livros foram torrados, antecipando uma era de censura política e cultural.
Noventa anos depois das chamas que devoraram as páginas de livros escritos por Ernest Hemingway, Jack London, Karl Marx e Stefan Zweig – este último, inclusive, esteve exilado no Brasil –, movimentos civis conservadores se organizaram novamente, sob pretextos similares, para promover uma intensa campanha com o objetivo de banir livros das bibliotecas escolares e públicas nos Estados Unidos. As proibições de livros nestes locais não são necessariamente uma novidade. A prática explodiu durante o macarthismo e, depois, no início dos anos 1980. Mas, apesar de estar presente há muito tempo na cultura política norte-americana, o universo dessa censura se expandiu drasticamente, de maneira inédita, a partir do início do ano letivo de 2021–22, que nos EUA não corresponde ao ano-calendário como no Brasil.
Amplos esforços para rotular certos livros como “nocivos” e “sexualmente explícitos” estão expandindo o tipo e o número de conteúdos suprimidos nas escolas. O ano letivo de 2022-23 tem sido marcado, até o momento, por uma escalada de proibições de livros e pela censura em salas de aula e bibliotecas escolares nos Estados Unidos, segundo relatório da PEN America. Esta organização atua na interseção entre Literatura e Direitos Humanos para proteger a liberdade de expressão.
A maioria dos casos de proibição de livros está concentrada em cinco estados: Texas, Flórida, Missouri, Utah e Carolina do Sul. Esta concentração está relacionada à ampla maioria conservadora em âmbitos local e estadual. Nesses estados, alguns distritos removeram grandes quantidades de obras, fazendo com que figurassem no topo da lista de unidades da federação sensíveis a livros.
O movimento para proibir livros em instituições publicas é impulsionado por uma parcela minoritária – mas bastante ativa – da sociedade norte-americana, como os grupos Moms for Liberty (Mães por Liberdade), Parents Defending Education (Pais Defendendo a Educação) e No Left Turn in Education (Sem Giro à Esquerda na Educação). Como mostrou uma pesquisa realizada em 2022 pela American Library Association (Associação de Bibliotecas Americanas), mais de 70% dos pais, mães e responsáveis nos EUA se opõem à proibição de livros. É a citada minoria ativa e militante que tem ocupado os conselhos escolares e exigido a supressão de parte da história norte-americana desconfortável aos olhos da branquitude, tais como o Massacre de Tulsa (1921) contra a população negra (ELLSWORTH, 2022); o Massacre de Sand Creek (1864), no Colorado, quando militares brancos dizimaram a população indígena Arapaho e Cheyenne; o Massacre de East St. Louis (1917), organizado por americanos brancos que promoveram ataques e assassinaram trabalhadores afro-americanos (JOHNSON, 2020), dentre outros exemplos.
Esses grupos de pais e mães conservadores, formados em 2021, após derrota do candidato republicano Donald Trump, têm expandido sua atuação para além dos conselhos escolares distritais e impulsionado novas leis estaduais que censuram ideias e materiais nas escolas públicas. Ao menos três estados americanos já criaram dispositivos legais para banir livros de escolas e bibliotecas sob pretexto moralista: Flórida, Missouri e Utah. Na Flórida, a H.B. 1557, também conhecida como a lei Don't Say Gay, que proíbe “a instrução sobre orientação sexual ou identidade de gênero no jardim de infância até a 3ª série ou de maneira que não seja apropriada para a idade ou para o desenvolvimento dos alunos” (tradução do autor) de acordo com os padrões estaduais, por funcionários da escola ou terceiros. Embora os advogados que representam o estado da Flórida digam que a lei Don't Say Gay não se aplica a bibliotecas escolares, mas apenas ao ensino em sala de aula; na realidade, vários distritos escolares interpretaram a lei como um mecanismo legal para banir livros com qualquer conteúdo LGBTQIA+ das salas de aula e das bibliotecas escolares.
No Missouri, o dispositivo S.B. 775 torna uma contravenção punível com multa ou prisão a distribuição aos alunos de material considerado “nocivo para menores” por qualquer funcionário (educadores, bibliotecários, professores-alunos, treinadores) ou visitante de uma escola. Na prática, ainda que a lei contenha exceções para “materiais de significado artístico ou antropológico”, várias escolas removeram histórias em quadrinhos com temática LGBTQIA+ e “Maus: a história de um sobrevivente” (1996), de Art Spiegelman, quando a lei entrou em vigor. Essas proibições têm um efeito prático interessante. Nesse estado, onde eventualmente até mesmo bebês podem portar armas, um jovem pode ir à biblioteca pública armado sem a autorização de adultos, mas uma vez lá, precisa de autorização de responsáveis para acessar, por exemplo, o aclamado best-seller “O conto da Aia” (1985) de Margaret Atwood.
No Utah, a H.B. 374 proíbe “materiais sensíveis” nas escolas e o gabinete do procurador-geral do estado orientou os distritos escolares a removerem livros “que sejam categoricamente definidos como pornográficos de acordo com o estatuto estadual”. Concretamente, as escolas retiraram obras de literatura por conter qualquer conteúdo sexual. Foi também nesse estado, seguindo essa lei, no Distrito Escolar de Davis, ao norte da capital Salt Lake City, que até mesmo bíblias foram retiradas das bibliotecas escolares por conterem passagens com “vulgaridade e violência”.
Além dessa legislação, que tem como foco o banimento, há ainda várias leis estaduais adicionais aprovadas em 2022 que têm impactado a disponibilidade de livros nas escolas, produzindo um efeito inibidor. Por exemplo, no Tennessee, a aprovação da “Lei de Materiais Adequados à Idade” (SB 2407) gerou um memorando que exigia a catalogação de livros em salas de aula e bibliotecas escolares. Depois disso, uma série de proibições foi relatada por professores nas mídias sociais ou em reuniões do conselho escolar. Com medo de punições, os próprios professores removeram as coleções das bibliotecas e das salas de aula em um exemplo de autocensura. Esses casos são de difícil quantificação e, portanto, não são capturados no Índice de Proibições de Livros Escolares da PEN America.
Outro exemplo semelhante a esse são as leis aprovadas também em 2022, tanto na Geórgia quanto no Tennessee, que exigem novos processos para avaliar os “livros desafiadores”, o que também deixa margem para novas censuras. A lei da Geórgia (SB 226) dá aos diretores de escola o poder de eliminar livros, porém concede apenas dez dias para a análise e decisão. A lei do Tennessee determina a criação de um novo comitê externo nomeado politicamente para resolver os apelos dos distritos escolares em relação às objeções aos materiais, concentrando em um pequeno grupo de indivíduos o poder de banir os livros de forma definitiva de todas as escolas públicas do estado.
Na Virgínia, a lei estadual (SB656) exige que o Departamento de Educação desenvolva políticas para garantir que os pais sejam notificados se os alunos estiverem recebendo materiais instrucionais “sexualmente explícitos” na sala de aula. Em um distrito, os membros do conselho expandiram essa política para incluir notificações de materiais nas bibliotecas escolares, tornando iminente a remoção de livros das bibliotecas. Enquanto isso, no Arizona, uma lei de 2022 (HB 2495) exige a aprovação dos pais para que os alunos sejam expostos a livros ou outros materiais que façam referências a “sexo”. É muito provável que essa lei promova autocensura entre os educadores, que evitam qualquer material que possa gerar controvérsia ou reclamação com o objetivo de resguardar seus empregos.
Vale dizer que há duas grandes diferenças no processo de escolhas de livros no Brasil e nos EUA. Primeiro, diferentemente do Brasil, onde os conselhos escolares municipais e estaduais são necessariamente ocupados por técnicos e profissionais da educação, nos EUA, qualquer um pode concorrer e integrar os conselhos distritais. A segunda grande diferença é o critério de escolha de livros no Brasil, sejam didáticos, paradidáticos ou livros para compor as bibliotecas. No Brasil, essa escolha é feita nacionalmente em uma consulta pública entre educadores através do Ministério da Educação e Cultura (MEC). Já nos EUA, os conselhos locais têm poder soberano sobre a escolha.
Apesar das diferenças, o banimento de livros nos EUA é uma questão importante para o ambiente intelectual e editorial brasileiro. Primeiro, porque as direitas brasileiras têm importado parte significativa do repertório extremista norte-americano, segundo porque isso levanta questões sobre o ataque que a História enquanto disciplina tem sofrido, seja no banimento dos livros ou em políticas administrativas universitárias e escolares que reduzem cada vez mais o espaço de atuação de historiadores.
Mas qual a natureza dos livros banidos pelo “Pânico Moral” (COWAN, 2016) das famílias conservadoras? A PEN America elaborou um index computando 1.648 livros proibidos. Desse total, 357 (22%) apresentam conteúdo sexual de vários tipos, incluindo romances com algum nível de descrição de experiências sexuais de adolescentes, histórias sobre gravidez na adolescência, agressão sexual e aborto, bem como livros informativos sobre puberdade, sexo ou relacionamentos.
O grupo mais atingido, com 674 livros (41%), são os títulos sobre temática LGBTQIA+ ou que tenham protagonistas ou personagens secundários que são LGBTQIA+. Isso inclui um subconjunto específico de títulos para personagens ou histórias transgêneros: 145 títulos (9%).
O debate sobre a sexualidade é o mais afetado, mas é acompanhado de perto pela tentativa de constranger o debate racial. Segundo o mesmo index, cerca de 659 livros proibidos (40%) contêm protagonistas ou personagens secundários negros, enquanto 338 (21%) tratam diretamente de questões de raça e racismo. Outros 161 (10%) títulos proibidos têm temas relacionados à luta por direitos e ativismo.
Por fim, 141 títulos proibidos (9%) são biografias, autobiografias ou memórias e outros e 64 (4%) incluem personagens e histórias que refletem minorias religiosas, como judeus, muçulmanos, entre outras.
Porém, a natureza dos livros afetados por algum tipo de censura tem cada vez mais se diversificado. As proibições no ano letivo de 2023, por exemplo, estão atingindo gradualmente uma faixa mais ampla de títulos, incluindo os que retratam violência e abuso (44%), discutem tópicos de saúde e bem-estar (38%) ou que abordam a morte e o luto (30%). Isso mostra como a censura tem afetado uma grande diversidade de livros, fundamentalmente porque os censores que ocupam os distritos escolares têm ao seu favor legislações vagas, que os permitem remover muitos livros sem qualquer revisão formal.
Quando analisamos os livros censurados por classificação etária, podemos ver que mais da metade dos títulos proibidos eram destinados a jovens adultos (56 %), mas as proibições também afetaram os leitores mais jovens: 15% das obras censuradas são indicadas para a “Middle Grade” – correspondente às idades de 8 e 12 anos – 4% são classificados como livros de ilustração e 1% são capítulos de livros. Com o avanço da censura sobre o sistema de bibliotecas públicas americanas, e apesar de a justificativa ser evitar que crianças e adolescentes tenham acesso a “conteúdo impróprio”, cerca de 24% dos livros censurados são destinados ao público adulto. Se considerarmos adultos e jovens adultos juntos, a proibição dos livros chega a 80%.
Apesar da maioria dos livros censurados serem de ficção (819 títulos), também há obras de não-ficção (321 títulos) na lista. Dentre elas, livros de História como An Indigenous Peoples' History of the United States (2019) (Um história dos povos indígenas dos Estados Unidos), de Roxanne Dunbar-Ortiz, ou An African American and Latinx History of the United States (2028) (Uma Historia Afroamericana e Latinx dos Estados Unidos), de Paul Ortiz; ou ainda o livro de Susan Campbell Bartoletti, They Called Themselves The K.K.K.: The Birth of an American Terrorist Group (2010) (Eles se chamam de KKK: O nascimento de um grupo terrorista americano). Como se vê, os livros de História banidos são sobre indígenas, negros ou sobre o supremacismo branco, histórias que fundamentalmente precisam ser ensinadas a jovens americanos.
A ideia de censurar livros e tentar sufocar economicamente editoras e autores está em sintonia com o anti-intelectualismo das direitas americanas. O estado do Missouri decidiu, no final de março de 2023, aprovar um orçamento estadual que eliminaria US$ 4,5 milhões em financiamento para bibliotecas públicas. O objetivo dos republicanos é muito explicito: reduzir o mercado editorial e impedir que autores possam viver exclusivamente de suas publicações.
Há uma ainda tímida reação a essas formas de censura. Em todo o país, pais, alunos, professores, bibliotecários e grupos comunitários tentam lutar, com algum sucesso, contra tentativas bem financiadas pelas direitas de removerem livros que abordam questões de raça, sexualidade e gênero. Algumas organizações têm sido fundamentais nessa batalha, como a Associação Americana de Bibliotecas, a Coalizão Nacional contra a Censura e o Fundo de Defesa Legal das História em Quadrinhos.
A luta tem sido travada principalmente nas assembleias e eleições escolares, mas também no judiciário ou ainda no legislativo estadual. Grupos têm distribuído livros proibidos nas ruas e feito campanhas voltada para o consumo de “livros banidos”. Na Flórida, essa disputa tem se desenvolvido nos tribunais, onde grupos e profissionais do Direito tentam classificar a política de banimento de livros como violadoras dos direitos constitucionais à liberdade de expressão e proteção igualitária. Mas a mais significativa vitória sobre esse processo foi a aprovação de uma lei que impede o banimento de livros de bibliotecas e escolas no estado do Illinois, governado pelo democrata J.B. Pritzker, que é entusiasta do novo dispositivo legal.
Diante desse cenário difícil, o país que se consolidou propagandeando a liberdade individual, e até invadiu, bombardeou e saqueou outros países sob essa bandeira, precisa se olhar no espelho e fazer uma reflexão profunda capaz de promover um acerto de contas com a sua história, ou, em breve, veremos (novamente) fogueiras cujas chamas serão alimentadas por livros.
Referências:
JOHNSON, Walter. The Broken Heart of America: St. Louis and the Violent History of the United States of America. New York: Basic Books, 2020.
ELLSWORTH, Scott. The Ground Breaking: The Tulsa Race Massacre and an American City’s Search for Justice. New York: Dutton, 2022.
Como citar este artigo:
BARBOSA, Caio Fernandes. Os inimigos dos livros. História da Ditadura, 7 ago. 2023. Disponível em: [https://www.historiadaditadura.com.br/post/os-inimigos-dos-livros]. Acesso em: [inserir data].
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