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Foto do escritorCarlos Bauer

Pensando o fracasso da desnazificação

Nos últimos dez anos, a indústria cinematográfica trouxe à luz duas obras importantes sobre o nazismo. O primeiro filme, Negação (2016), é uma adaptação do conhecido livro History on trial: my day in Court with a Holocaust denier (2005), de Deborah Lipstadt. A renomada acadêmica estadunidense é conhecida por seu trabalho sobre a negação do holocausto, desconstruindo falácias difundidas como verdades históricas.

Foi exatamente a negação da Shoah que levou o inglês David Irving, muito envolvido com grupos de extrema-direita, a processar a autora na Inglaterra. O julgamento ganhou contornos dramáticos, colocando frente a frente negacionistas e o trabalho crítico e metódico de historiadores acadêmicos. Apesar de parecer um absurdo para muitas pessoas, o número e a força dos negacionistas não devem ser desconsiderados, visto que sua força e reverberação política vêm avançando em variadas áreas das ciências e sociedade.

O segundo filme retrata um assunto diferente, mas inserido no mesmo contexto. Labirinto de mentiras (2015) reproduz o esforço de promotores da Alemanha Ocidental que acabou levando aos chamados “Julgamentos de Auschwitz (1963)”. A história retrata a realidade do pós-guerra: nazistas reintegrados à sociedade da jovem democracia alemã, além de evidenciar a presença de antigos colaboradores no Poder Judiciário.

Este não é um texto de crítica cinematográfica, mas essas duas obras são importantes pontos de partida para uma discussão que muitas vezes escapa do currículo do ensino básico e não passa por reflexões dos discentes: a desnazificação. O problema recorrente de se periodizar tudo com supostas finalidades pedagógicas acaba engessando os conteúdos de ascensão do fascismo/nazismo e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Com isso, cria-se a concepção de que o nazismo morre com o encerramento do conteúdo e do cronograma.

Na verdade, falar de desnazificação é extremamente delicado, já que o próprio conceito deve ser problematizado em sua formação. O prefixo des oferece uma ideia de negação. Logo, entende-se como o processo de desmonte das estruturas hitleristas. Talvez seja esse um dos principais questionamentos: é possível arrancar as raízes de algo tão inserido na sociedade, nas mentalidades e na política como foi o nazismo?

Ademais, ao pensarmos nas estruturas do nazismo não podemos incorrer no esquecimento da influência do conservadorismo alemão no Terceiro Reich. Encontramos tais características se olharmos para o passado romântico, para as campanhas de unificação, para a nobreza da terra etc. É inegável que o hitlerismo foi novidade em muitos sentidos, mas aprimorou, em grande parte, elementos do conservadorismo alemão. Um exemplo é o antissemitismo, muito associado ao holocausto, mas já existente há centenas de anos no continente europeu.

Portanto, muitas raízes do nazismo foram plantadas na gênese da sociedade alemã. O trabalho de desnazificação estaria disposto a confrontar ou a conservar essa realidade? Não é irrelevante o contexto do processo e os seus agentes. A Alemanha do pós-guerra era uma nação destruída, ocupada, falida e sem estrutura política. Ruth Andreas-Friedrich, em Diários de Berlim ocupada (1945-48), retrata a realidade do povo alemão nos meses que se passaram à morte de Hitler no bunker da Chancelaria. Dessa maneira, não era o povo alemão que estava à frente do início da desnazificação, eram os aliados. Assim como os tribunais do pós-guerra foram coordenados pelos vencedores, fato analisado por Hannah Arendt ao observar o julgamento de Adolf Eichmann, de onde partiu a fonte para o conceito de banalidade do mal. Inicialmente, os aliados adotaram a chamada política dos 4D’s: democratizar, descentralizar, desnazificar e desmilitarizar.

Missão e objetivos da ocupação dos EUA 1. Desnazificação: Remoção de nazistas de todas as posições de poder. Plak 004-004-008-T1, Budesarchive (Entnazifizierung, Wiederaufbau und Selbstverwaltung, 1947)

É um erro, portanto, compreender a desnazificação como fato isolado. Ela foi parte do projeto de ocupação da Alemanha, esta que caminhou para a reprodução clara da bipolaridade entre estadunidenses e soviéticos chegando à construção do muro em 1961. O três D’s restantes eram mais passíveis de êxito do que ir de encontro aos resquícios sociais do nazismo.

Missão e objetivos da ocupação dos EUA 2. Desnazificação: Remoção de nazistas de todas as posições de poder. Plak 004-004-008-T2 Budesarchive (Entnazifizierung, Wiederaufbau und Selbstverwaltung, 1947)

Outro ponto é a profundidade da doutrina e a sua representação. Os julgamentos de Nuremberg, iniciados já em 1945, buscaram condenar criminosos de guerra, lidar com os crimes contra a humanidade, classificar o RSHA (Reichssicherheitshauptamt, ou, gabinete de segurança do Reich) como organização criminosa e condenar lideranças nazistas. O führer jamais foi julgado, tirou a própria vida para não cair em mãos soviéticas. Goebbels tirou sua própria vida, a da esposa e as dos filhos. Himmler também recorreu ao suicídio. Goering chegou perto da execução, mas se matou em sua cela.


Portanto, grande parte do alto escalão já estava morto antes do julgamento. É óbvio que outras figuras de poder ainda estavam vivas, não à toa foram julgadas e executadas, geralmente com enforcamento. Entretanto, qual é o impacto social da execução pensando na já citada profundidade do movimento?

Recorremos, para isso, ao trabalho de Robert Gellately, muito criticado pela historiografia marxista por se colocar no campo revisionista da História. Gellately dedica sua pesquisa ao apoio da sociedade alemã ao nazismo, presente em vertentes como as denúncias de populares à Gestapo. Tais denúncias muitas vezes possuíam interesses próprios, mas outras eram clara simpatia ao movimento. Outra vertente é o suposto desconhecimento dos campos de concentração, muito presente em frases como “nós não sabíamos”. Este desconhecimento é irreal; grande parte dos alemães sabia, mas agiu como se os campos pertencessem a outro mundo.

Fora os cidadãos comuns, os membros do “baixo escalão” também podem entrar nesta abordagem. O caso da Gestapo é clássico, como exposto por Frank McDonough. A polícia secreta utilizou grande parte do efetivo prussiano de policiais criminais, muitos não filiados ao nazismo antes da ascensão de 1933. As lideranças eram dadas a indivíduos doutrinados recrutados em faculdades de Direito. Nos julgamentos de Nuremberg, a defesa da Gestapo acabou fracassando ao apontar o argumento de policiais comuns para tentar evitar a classificação de “organização criminosa”.

Além desses casos, podemos citar o Poder Judiciário e a religião. Para a manutenção de cargos públicos, a justiça se rendeu ao nazismo. Eichmann defendia agir dentro das normas ao realizar seu trabalho. A realidade é que a suposta legalidade estava nas mãos do nazismo, o que expõe a complexidade do tema. Entre os religiosos, as igrejas sofreram com divisões internas: grupos apoiadores do nazismo e grupos perseguidos.

Como seria possível lidar com esses e outros segmentos sociais influenciados pela magnitude do Terceiro Reich? O método adotado pelos aliados mostrou-se ineficaz desde a sua gênese: utilizar tribunais de desnazificação, formulários para levantamento de nazistas, utilização de “ex-nazistas” na limpeza das ruas destruídas, com ração diária reduzida, e exposição de documentários com imagens da realidade da guerra.

Grethe Weiser, atriz, à frente da comissão de desnazificação. É classificada como "aliviada" e pode continuar a exercer a sua profissão. B 145 Bild-P029199, Bundesarchiv (Berlin - Grethe Weiser vor der Entnazifizierungskommission)

Os formulários fracassaram principalmente pelo número elevado de indivíduos que os preenchiam. Outro fator determinante foi o crescente desinteresse dos alemães em relação às potências ocupantes. Por que seriam eles os responsáveis pelo futuro da Alemanha? Qual a propriedade que teriam sobre o passado e o futuro da nação? É equivocado conceber o arrependimento instantâneo de antigos membros das fileiras nazistas, o que influenciava na persistência do clima de nós e eles.

Conforme a década de quarenta ia caminhando para seu encerramento, as rivalidades geopolíticas acirraram-se. A Alemanha virou palco dessas divergências entre modelos antagônicos e a desnazificação passou por dois momentos quando inserida nessa realidade: instrumentalização e abandono.

A instrumentalização ocorreu no campo da propaganda. No Leste, corria a história de que os ocidentais eram complacentes com os antigos nazistas, muitas vezes tomando-os como aliados (não deixa de ser realidade, os Estados Unidos, por exemplo, importaram cérebros nazistas). Os soviéticos, de início, eram mais duros com os nazistas, enviando-os para campos de trabalho ou condenando-os à morte. Outras acusações iam no sentido de associar nomes da redemocratização com o passado nazista.

O entulho reacionário deve ir embora! Votem comunistas. Plak 004-012-036, Bundesarchiv (Der reaktionäre Schutt muß weg! Wählt Kommunisten, 1945/49)

O abandono foi progressivo e teve total influência da Guerra Fria. Conforme os interesses foram sendo centralizados na disputa global, o foco interno foi sendo solapado pelas duas potências. Um caso clássico foi a utilização dos bombardeios de Dresden (1945) como objeto de ataque aos ocidentais. Soviéticos exploraram o “crime de guerra não reconhecido” cometido pelos ocidentais. Dresden foi duramente bombardeada por ingleses e estadunidenses e, até hoje, seu passado é centro de disputa entre neonazistas e sociedade democrática.

O ano de 1948 é visto como o fim da desnazificação e as consequências do abandono corroboram a ideia do fracasso. Na segunda metade do século XX, podemos observar o crescimento da relativização e do negacionismo, mesmo em meio a novos julgamentos como os de Eichmann e de Auschwitz. Até hoje nos deparamos com notícias que trazem figuras idosas sendo condenadas por crimes durante o nazismo.

Existe evidente relação desse fracasso com o aparecimento de grupos neonazistas, ainda que o suposto sucesso não fosse impedimento para o fortalecimento de extremistas. Todavia, a desnazificação pode ser vista como um movimento contemporâneo, já que são muitos os que reivindicam o nazismo como cultura política. Desta forma, as políticas de memória – adotadas com êxito em muitas cidades alemãs – são as armas mais eficientes.

Os filmes que abriram este texto trazem, minimamente, essa realidade. Um retrata o julgamento que partiu de convicções pessoais e buscava livrar a Alemanha de pessoas envolvidas nas mortes de Auschwitz. O outro, trata dos reflexos do fracasso: discursos negacionistas vociferados como se fossem liberdade opinião e passíveis de complacência. Ainda é preciso desnazificar.


Carlos Bauer é historiador.

Referências:

ADORNO, T. Educação após Auschwitz. In: Educação e Emancipação. 3ª Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.


ANDREAS-FRIEDRICH, R. Diários de Berlim ocupada (1945-1948). São Paulo: Globo, 2012.


ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.


GELLATELY, R. Apoiando Hitler: consentimento e coerção na Alemanha nazista. Rio de Janeiro: Record, 2011.


LIPSTADT, D. Denying the Holocaust: the growing assault on truth and memory. Plume 1994.


LIPSTADT, D. History on Trial: my day in Court with a holocaust denier. Ecco, 2006.


McDONOUGH, F. Gestapo: mito e realidade na polícia secreta nazista. São Paulo: Leya, 2015.


TSUKIMOTO, C S. Entre a desnazificação e a amnésia coletiva. XXIX Simpósio Nacional de História, 2017. Disponível em ANPUH. Acessado em: 22 de outubro de 2020.



Crédito da imagem destacada: "A German girl is overcome as she walks past the exhumed bodies of some of the 800 slave workers murdered by SS guards near Namering[1], Germany, and laid here so that townspeople may view the work of their Nazi leaders., 05/17/1945" Cpl. Edward Belfer. May 17, 1945. Nara #111-SC-264895.

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