Pensar a ultradireita após a transição democrática
Com a ascensão do bolsonarismo, a ultradireita ganhou destaque nos noticiários e é objeto de um crescente interesse acadêmico, abrangendo disciplinas das mais variadas. Juntamente com o surgimento de uma nova geração de pesquisadores e pesquisadoras, assiste-se ao reforço de uma longa tradição de estudos dedicados a temas com o autoritarismo, o fascismo, o anticomunismo e outras facetas das direitas no Brasil.
Por se tratar de um tema candente e recente, o bolsonarismo é por muitas vezes tomado como uma espécie de renascimento de tendências ou de tradições das direitas radicais surgidas ao longo do século XX – especialmente o fascismo e o autoritarismo militar. Seria o bolsonarismo uma espécie de espasmo de um espírito latente?
Por outro lado, o bolsonarismo é comumente reduzido a uma espécie de adaptação de uma onda global, cujas referências seriam encontradas em inspirações intelectuais e, principalmente, práticas políticas de tendências como a alt-right nos Estados Unidos, a democracia iliberal de Viktor Orbán e assim por diante. Seria o bolsonarismo um episódio brasileiro de uma hecatombe internacional?
A hipótese analítica que pretendo trabalhar na coluna “Histórias da Extrema Direita brasileira” é justamente a conjugação entre essas duas dinâmicas. Trata-se de uma relação nada harmoniosa entre tradições arraigadas no pensamento e na prática política brasileira e latino-americana, e novas tendências, dinâmicas e inspirações globais no tempo presente. E é justamente o tempo presente, historicizado, que será objeto de discussão nesta coluna.
Como pensar a ultradireita brasileira mais recente? Em primeiro lugar, um breve ajuste em termos de categorias de análise. Proponho o termo ultradireita justamente para entender suas relações conflituosas com a democracia. É uma terminologia bastante assentada na literatura sobre o tema, mas ainda pouco popularizada no Brasil. A ultradireita, em termos gerais, é definida em dois grandes blocos, que convergem em termos ideológicos (ou de narrativas e mitologias políticas), mas divergem em perspectivas estratégicas e políticas, principalmente em relação à democracia (liberal e representativa).
Em linhas gerais, enquanto a direita radical se adequa às regras democráticas e se organiza por meio de partidos políticos legalmente estabelecidos, a extrema direita age em contraposição à democracia, propondo uma mundividência alternativa. Mas, estas linhas divisórias são tênues, particularmente no Brasil; e compreender essa relação, da direita radical à extrema direita, é o objetivo dos textos que virão.
No Brasil, a transição democrática e a chamada “Nova República” foram laboratórios de experiências e práticas para essa ultradireita, que passou de “envergonhada” a relativamente hegemônica – eleitoralmente falando. O fato de o Brasil ser um dos países que inauguraram a última onda de democratização traz algumas particularidades. Tal como ocorrido em outros países de tradição democrática recente – Portugal, Espanha e Grécia, para citar exemplos não latino-americanos –, essa ultradireita teve que lidar de maneira interessante, analiticamente falando, com os passados autoritários/fascistas e as novas possibilidades do tempo presente.
Por isso, os textos que virão serão destinados a algumas reflexões: como a ultradireita brasileira se adequou após o fim do regime militar? Como as tendências históricas se manifestaram ao longo da transição democrática? E, não menos importante, como essas questões vão se manifestar na mais recente crise democrática? Pretendo, assim, trazer algumas pistas de investigação, dialogar com a bibliografia que vem sendo produzida sobre o tema e, é claro, compartilhar algumas das angústias do trabalho com a extrema direita no olho do furacão. Pois, entre os espasmos e a hecatombe, há um passado e um presente a ser considerado.
Créditos da imagem destacada: Bolsonaro anuncia fim de tarifa para motos em pedágios. Autor: Marcos Corrêa/Presidência da República. Wikimedia Commons.
HUNTINGTON, Samuel. A terceira onda: a democratização no final do século XX. São Paulo: Ática, 1994.
MUDDE, Cas. The Far Right Today. Cambridge: Polity Press, 2019.
TRAVERSO, Enzo. Las Nuevas Caras de La Derecha. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2018.
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