“Precisamos mostrar o terror que foi a ditadura”: entrevista com Márcio Seligmann-Silva
Atualizado: 3 de mai. de 2022
Desde novembro de 2021, o Centro Maria Antônia, da Universidade de São Paulo (USP), passou a abrigar a exposição permanente intitulada MemoriAntonia: por uma memória ativa a serviço dos direitos humanos, sob a curadoria do professor Márcio Seligmann-Silva e do pesquisador Diego Matos. A mostra reúne diferentes manifestações artísticas que visam ativar a memória referente ao passado ditatorial, articulando o espaço do centro universitário – local da chamada “Batalha da Maria Antônia”, ocorrida nos dias 2 e 3 de outubro de 1968 – com os impactos que a ditadura civil-militar provocou na história do Brasil.
A experiência de curador proporcionou a Seligmann-Silva, professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e pesquisador do CNPq, um intenso trabalho de denúncia da brutalidade da ditadura brasileira e de ênfase na importância de lembrarmos as marcas que este período inscreveu em nossa sociedade. Neste sentido, esta entrevista busca compreender como se deu o trabalho de curadoria do MemoriAntonia, sobretudo por se tratar de uma tarefa que entrelaça história, memória e arte, dimensões que ocupam um papel central nas atividades deste professor.
Com formação em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Freie Universität Berlin, Márcio Seligmann-Silva é reconhecido como um importante leitor e tradutor da obra de Walter Benjamin, além de produzir pesquisas sobre o testemunho, as artes e a memória da violência das ditaduras latino-americanas. Entre as obras de sua autoria, destacam-se Ler o livro do mundo. Walter Benjamin: romantismo e crítica poética (1999) e O local da diferença (2005) – publicações vencedoras do Prêmio Mario de Andrade e do Prêmio Jabuti, respectivamente –, além da organização de livros como História, memória e literatura (2006) e Imagem e violência (2012).
Professor Márcio, agradeço a sua disponibilidade para esta entrevista. Tomando como ponto de partida o seu recente trabalho de curadoria na exposição MemoriAntonia junto com o pesquisador Diego Matos, gostaria de saber como a proposta chegou até vocês e como foi a pensar e desenvolver este trabalho.
Márcio Seligmann-Silva: Eu frequento muito o Centro Maria Antônia, e me lembro de estar em um evento sobre a ditadura militar – acredito que se tratava do lançamento de teses defendidas na UNICAMP em agosto de 2019 e que foram transformadas em livros – quando a professora Lúcia Maciel de Oliveira, diretora da instituição, decidiu conversar comigo. Ela sabia dos meus trabalhos sobre memória e a ditadura e disse sentir falta de um espaço voltado para a inscrição desse passado naquele local de grande significado histórico e simbólico para o Brasil. Após esse primeiro contato, que ocorreu há pouco mais de dois anos, passei a pensar em uma exposição, pois percebia a importância dos dispositivos visuais de inscrição e de transmissão desse passado. Me interessou ver como esses dispositivos visuais eram capazes de se atualizar, produzindo uma empatia e um interesse que é difícil de despertar em uma população que está o tempo todo ocupada com outras preocupações bastante prementes, em uma sociedade que precariza os empregos, a cidade e a vida de modo geral.
Foi importante considerar as artes visuais e o cinema, para além da literatura. É óbvio que a literatura é algo fundamental, mas o Centro Maria Antônia colocava um problema que era o da espacialidade – ou seja, era preciso tornar aquele espaço atrativo para ressignificar o passado ditatorial. A partir disso, pensei em alguns artistas que eu já conhecia, e o próprio centro serve de arquivo para algumas obras fotográficas, mas que não estavam organizadas com uma curadoria. Então, propus a inclusão dessas fotografias ao lado de outras obras visuais para produzir uma espécie de projeto artístico, mnemônico e político, principalmente em um contexto que foi se tornando cada vez mais evidente a importância dessa memória da ditadura. A manipulação dessa memória ficou visível nos últimos anos, inclusive em outros países latino-americanos, como o Chile, onde um dos candidatos à presidência em 2021 representou a nostalgia de um pinochetismo. No Brasil, o candidato de 2018 foi eleito manipulando essa questão ditatorial, afirmando que os militares não foram corruptos, que houve desenvolvimento, além da presença de um tipo de “gozo perverso” de falar que a pessoa mais importante da época foi um torturador notório. É esse tipo de gozo que está por trás da sustentação da ditadura como um troféu levantado por políticos da extrema-direita.
A exposição tenta falar de forma direta sobre o que aconteceu. Sabemos que o espaço Maria Antônia enfatizava a cena do que foi chamado como a “Batalha de Maria Antônia”, que ocorreu entre 2 e 3 de outubro de 1968, mas ao lermos sobre esse período – inclusive depoimentos de testemunhas que estavam ali –, ficou evidente que não se tratava de uma batalha, tal como o próprio centro universitário enfatizava. Se tratou mais de um ataque, de uma brutalidade produzida pelos órgãos de segurança junto aos “milicianos” da época, o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), que se associou aos policiais na invasão, destruição e morte de um estudante secundarista. Achei importante reatualizar essa história, mas sempre tentando dar um passo atrás, não visando só destacar os dias da “batalha”, sob o risco de perder o olhar mais amplo para aquele momento. O projeto curatorial visou produzir esse foco mais distante, localizando o que acontecia nas ditaduras latino-americanas e na Guerra Fria. A ideia foi construir uma exposição que falasse do espaço Maria Antônia, mas especialmente da ditadura que o envolveu.
Precisamos falar muito sobre a ditadura, precisamos publicizar as pesquisas e encontrar mais meios de divulgá-las, pois essa banalização é estratégica para a extrema-direita. Dizer que a ditadura é boa é uma maneira de naturalizar a desmontagem da democracia. Nós temos que falar da tortura, da corrupção e da inflação. Precisamos mostrar o terror que foi a ditadura.
Após esta proposta para o Centro Maria Antônia, que fiz em fevereiro de 2020, tivemos a pandemia e o projeto ficou suspenso por cerca de um ano, até que o retorno gradual das coisas no início de 2021 nos permitiu dar início ao projeto de montagem da exposição. Para concretizar, precisei chamar pessoas com mais experiência em montagem, pois sou professor. Foi então que pude contar com uma equipe de execução e com um grande amigo meu, um grande curador, Diego Matos, que aceitou se associar a essa exposição. Junto com o Diego, trouxemos vários artistas e a ideia é que a exposição seja permanente. Sei que nada é eterno, mas ela é permanente no sentido de uma longa duração. Também destaco que os artistas foram muito generosos ao emprestarem ou doarem suas obras.
É interessante observar que a exposição reúne artistas de diferentes idades, experiências e relações com o tema da ditadura. Como foi concebida essa questão geracional?
Márcio Seligmann-Silva: Tive a ideia de fazer uma mistura de gerações desde a minha primeira proposta. Eu trabalho com as artes visuais e a ditadura há cerca de vinte anos, por isso conheço vários artistas. Inclusive, já participei de muitas mesas redondas, debates e defesas, pois muitos artistas são igualmente professores, como a Leila Danziger, por exemplo. Também decidi chamar novos artistas, jovens que nasceram após a ditadura, tal como o Jaime Lauriano, que é de 1985. São pessoas de uma “nova geração” que eu conhecia pessoalmente. Já o contato com os artistas do período da ditadura se deu a partir da visita de exposições e por sabermos que foram figuras importantes na resistência. Afinal, assim como os escritores sofreram ataques e resistiram, o mesmo aconteceu no campo das artes visuais. É importante ter esses dois grupos de artistas juntos, pois eles permitem complexificar a construção dessa memória.
Pensando em termos banais de uma teoria da História, é evidente que nunca conseguiremos apresentar o passado tal como ele foi, já que estamos sempre o reconstruindo. Esses grupos de idades e estilos diferentes mostram como cada época capturou a atmosfera ditatorial com poéticas próprias. Isto não quer dizer que a linguagem dos artistas da década de 1970 seja ultrapassada, mas há uma questão de linguagem e de leitura que se altera. Por exemplo, os artistas contemporâneos fazem a leitura pensando dispositivos de inscrição artística e mnemônica que permitem uma empatia usando ferramentas do nosso tempo. Eu e o Diego ficamos muito felizes com o resultado do encontro.
Pudemos contar com a participação de artistas como a Fúlvia Molina, que foi estudante no período e que esteve nas lutas de resistência, perdendo muitos colegas e amigos. Na época, ela era estudante de Biologia e se tornou artista mais tarde. Ou seja, mesmo sendo contemporânea aos artistas da primeira geração, ela pertence à segunda geração. A Fúlvia trabalha com a fotografia e isso é muito interessante, pois a fotografia é muito importante nas artes contemporâneas, sobretudo nas artes latino-americanas. Isso se dá porque a fotografia pode ser concebida como um dispositivo estético de inscrição do desparecimento, e nós sabemos como na América Latina a questão dos desaparecidos políticos possui um papel importantíssimo. Não nos esqueçamos que as demandas por democracia sempre foram acompanhadas por demandas sobre o paradeiro dos desaparecidos.
A Fúlvia fez diversos totens com as imagens de colegas que morreram na luta contra o regime. Para selecionar as imagens, a artista partiu de uma lista de presença de uma reunião de estudantes na qual ela esteve presente, justamente no espaço Maria Antônia, em 9 de agosto de 1966. Em meio aos participantes estão cinco pessoas que foram assassinadas pela ditadura e as fotografias delas estão reproduzidas nos totens. Vi muitas pessoas chorando diante dessas imagens, pois são pessoas jovens que morreram por um país democrático, por um país mais justo. Esta obra foi chamada por ela de MemoriAntônia, e nós optamos por retomar esse nome para denominarmos a exposição. Esse nome, aliás, já havia sido utilizado em outra exposição no espaço Maria Antônia, em 2003, com a participação da Fúlvia, do artista argentino Marcelo Brodsky e dos alemães Horst Hoheisel e Andreas Knitz.
Além das obras da Fúlvia Molina, o senhor poderia dar um panorama dos artistas e obras que fazem parte da mostra?
Márcio Seligmann-Silva: A entrada apresenta uma obra da Giselle Beiguelman, Pergunte às pedras, série 2, que é uma escrita em neon que provoca um questionamento sobre o que nós lembramos, o que nós lembramos de esquecer e o que esquecemos de lembrar. Este jogo de palavras que a Giselle propõe é, de certa maneira, o que toda a exposição propõe. Também temos uma obra do Marcelo Brodsky, que é um fotografo de reconhecimento internacional. Pude visitar uma exposição recente dele, em Berlim, onde o tema tratado foi a violência colonial da Alemanha na região da atual Namíbia. O Marcelo possuí uma obra chamada A USP na rua, a Filosofia nas mãos: São Paulo 68 (2014), que é uma fotografia realizada a partir de outra imagem, feita em um evento que ocorria no Maria Antônia em 2003 e que projetava slides sobre 1968. É uma obra na qual podemos observar, de forma fluída, uma manifestação pela democracia.
A exposição também conta com algumas fotografias do Hiroto Yoshioka, que era um estudante de arquitetura da USP e que na época já fotografava, bem como do grande Orlando Brito, que nasceu em 1950 e que começou a produzir suas imagens muito cedo, com dezesseis anos. Destaco igualmente a obra da Leila Danziger, Pesquisa escolar (2020), que reúne quatro imagens específicas referentes aos assassinatos do Carlos Lamarca e do Vladimir Herzog, à Copa de 1970 e à escola que ela frequentou naquele mesmo período. A Leila utiliza uma estética de carimbos para criar uma espécie de “topografia das datas”, fazendo com que as pessoas reconstituam os seus calendários mentais, dando maior dignidade para esses momentos específicos.
Afinal, nós comemoramos coisas que não deveriam ser comemoradas. É triste esquecermos de tantas outras coisas, de tantas lutas e resistências.
Outro artista é o Carlos Zilio: carioca, lutou na resistência armada, foi preso, torturado e inscreveu isso no seu trabalho. Há uma obra chamada Identidade ignorada (1974), uma fotografia de dois pés de uma pessoa em um local que nos lembra o IML, e, entre os dedos, consta um papel afirmando se tratar de uma “identidade ignorada”. Esta fotografia é uma referência evidente à questão da onipresença dessa tanatopolítica – ou dessa necropolítica, como falamos hoje a partir de autores como Michel Foucault e Achille Mbembe. Além dos artistas que mencionei, também posso citar nomes como o Cláudio Tozzi, que produziu obras conhecidas como Guevara Vivo ou Morto (1967); ele se utiliza da pop-art, muito em voga nos anos 1960, reatualizando essa estética para tentar recarregar o sentido político da imagem tão reproduzida do Guevara. O Tozzi também possui uma obra que é o Usa e abusa (1966), que produz uma crítica ao evidente colonialismo norte-americano, extremamente presente na época.
Preciso ressaltar a importante presença do trabalho do Evandro Teixeira, com Sexta-feira sangrenta na Cinelândia (1968), uma das obras fotográficas mais reproduzidas e também menos pensadas no seu contexto. É uma obra que deve ser observada com calma e a exposição permite que as pessoas se aproximem dos seus detalhes. Sempre que vejo esta imagem da polícia espancando um rapaz, recordo de uma entrevista na qual o Evandro comentou que os policiais deixaram de agredir o jovem ao perceberem que eram fotografados. Ele descreveu que o rapaz caiu ao chão e se feriu, mas que não pôde voltar para ajudá-lo, pois foi preciso fugir dos policiais que o viram com a câmera e passaram a persegui-lo. O Evandro também contou que nunca conseguiu encontrar o jovem. Como esta imagem é muito reproduzida, uma das ideias que sustentam a curadoria da exposição é a de produzir imagens que possam ser guardadas na nossa memória.
Falta na memória da nossa sociedade a presença de imagens que sejam icônicas sobre a ditadura, que sejam vistas por todas as pessoas e que rapidamente remetam a esse período violento. Da mesma forma, ainda faltam espaços que todos reconheçam e que permitam a toda população brasileira lembrar daquela brutalidade.
Também podemos pensar que faltam espaços para que toda a sociedade reconheça a violência colonial direcionada aos afro-brasileiros na nossa história. É um silêncio que ainda predomina no nosso presente. O Cais do Valongo, por exemplo, é um lugar que só os historiadores conhecem, os próprios cariocas sequer sabem dizer o que é aquilo. Já em São Paulo, na Praça da Liberdade, a memória da escravidão se encontra soterrada. Pensamos em trazer algumas imagens conhecidas para que elas sejam, de alguma forma, ainda mais enraizadas na nossa memória coletiva. A exposição busca produzir um espaço de memória imagético.
Quero citar o Gilvan Barreto, que também trabalha com grande propriedade o tema da ditadura. Sua obra é composta por quatro placas com frases em parte extraídas de hinos, que se tornam provocativas graças o recurso do recorte: “Nossos bosques têm mais vida”, “O Céu de brigadeiros Chovia gente”, “O afeto que se encerra em nosso peito juvenil”. No caso da segunda placa, ele aproxima o céu de brigadeiro, que é este céu lindo de se voar, com os “voos da morte”, uma prática que aconteceu em toda América Latina e em locais como o Vietnã. Isso nos leva a pensar que se tratava de uma prática recorrente, talvez ensinada pelo exército norte-americano. Há placas nas quais o Gilvan retoma trechos de hinos, como o do exército ou à bandeira, indicando os traços dessas formas de propaganda ideológica tão repetidas nos governos totalitários. Ou seja, ele ironiza o patriotismo com sua hipocrisia que é marca da ditadura assim como de governos ostensivamente necropolíticos. Isso nos faz refletir sobre a raiva que o atual governo possui dos historiadores e de todos aqueles que pensam criticamente a História.
Temos igualmente os trabalhos geniais do Rafael Pagatini, um artista gaúcho que também é professor. Ele é alguém interessado no tema da ditadura e traz obras potentes, como Manipulações (2016): a xilogravura de um fusca em chamas produzida sobre um papel japonês com uma determinada fibra vertical. Trata-se de uma obra que se movimenta e que produz um efeito ambíguo, o que pode nos indicar toda essa violência e, ao mesmo tempo, algo delicado como esta folha japonesa lembra como tudo é frágil na nossa memória. A fragilidade do papel nos chama atenção para a maneira como as nossas construções mnemônicas funcionam. É importante que se trata do retrato de um fusca que não pertenceu ao período da ditadura, mas ao ano de 2013, o que indica certas continuidades que levam o visitante a produzir um deslocamento no interior daquilo que é a história do Brasil.
A Lais Myrrha possui um trabalho chamado Reconstituição (2008), obra onde ela reproduz o texto da nossa atual Constituição Federal, mas deixando-o totalmente desfocado, de modo que nós não conseguimos lê-lo. A única palavra legível em todo o material é “exceção”. Esta obra foi criada no mesmo momento em que as reflexões do Giorgio Agamben sobre o estado de exceção, inspiradas em autores como Walter Benjamin, passaram a chegar com maior intensidade no Brasil. O trabalho da Myrrha nos lembra das relações entre a constituição e o estado de exceção, pois o próprio texto constitucional prevê a exceção. Ela sempre está presente de diferentes modos e estamos vendo isso no atual governo. É um tema relevante, porque a ditadura é um momento radical de suspensão dos direitos, mas os traços desta suspensão ainda se fazem bastante presentes na nossa sociedade. Além das fotografias, quadros e instalações artísticas, os visitantes também podem entrar em contato com vídeos, áudios e fragmentos jornalísticos. Como esses materiais se relacionam com a proposta da exposição?
Márcio Seligmann-Silva: Estes recursos nos ajudaram a colocar temas como a questão indígena, pois conseguimos o filme GRIN – Guarda Rural Indígena (2016), sobre uma tropa indígena formada na ditadura. O Isael Maxakali, a Sueli Maxakali e o Roney Freitas produziram um documentário que aborda esta parte bastante apagada da história da ditadura brasileira. O capítulo que a Comissão Nacional da Verdade produziu sobre a questão indígena, sob a coordenação da Maria Rita Kehl, mencionou mais de 8.350 pessoas mortas somente em um determinado período na região do Amazonas, mostrando que ocorreram milhares de assassinatos de indígenas. Infelizmente, eles não estão incluídos no número oficial do volume, que descreve os 434 mortos. Lembro que perguntei sobre este aspecto ao então presidente da CNV, Pedro Dallari, às vésperas de sua entrega oficial em dezembro de 2014, e me foi dito que faltavam dados para tanto. Ora, eu considero este argumento extremamente positivista e nós sabemos que o positivismo sempre pendeu para o lado dos mais poderosos. Junto com o Diego, sentimos que era preciso fazer uma referência à questão indígena e este documentário nos ajudou muito.
Outro vídeo utilizado foi O Brasil (2014), de Jaime Lauriano, que recupera as propagandas ideológicas da época. Optamos por deixar o vídeo aberto, o que produziu um “fundo sonoro” fundamental para a exposição. Além das obras de arte, achamos interessante a presença de reproduções da revista Veja sobre a chamada “Batalha de Maria Antônia”. Muitas imagens são fortíssimas e são conhecidas somente por quem estuda a história da ditadura na academia. Penso que todas as pessoas do nosso país deveriam ter essas imagens na cabeça, já que nos mostram o que é uma ditadura, nos mostram o que é deixar um filho na escola e encontrá-lo morto por órgãos policiais. Acho que esta mistura de arte com jornalismo e fotografia se liga com a construção complexa da nossa memória. Da mesma maneira, colocamos o jornal Lampião da Esquina para lembrarmos da perseguição aos homossexuais e da resistência das minorias. Por fim, optamos também pela presença de alguns depoimentos, pois já existia um trabalho do próprio Centro Maria Antônia, que estava desenvolvendo um projeto de vídeo-testemunhos, e compreendemos que esses materiais são muito relevantes para que nós possamos nos identificar com essas narrativas individualizadas, com esta história que possui muitas vozes, rostos e gestos.
O título da exposição é MemoriAntonia: por uma memória ativa a serviço dos direitos humanos. O senhor poderia aprofundar este conceito de “memória ativa”?
Márcio Seligmann-Silva: O termo “memória ativa” tem uma inspiração argentina. Na Argentina, se fala sobre isso desde os anos 1980 e 1990: a reivindicação de uma memória para não se repetir o que aconteceu, mas também de buscar a construção de uma sociedade que não permita que fascistas e pessoas autoritárias subam ao poder.
Memória ativa é uma memória voltada para a construção de uma sociedade na qual o passado se presentifica e transforma o presente. Não se trata de um passado musealizado, engessado, mas de um passado que nos permite construir novas paisagens de atividade política. É isso que a nossa sociedade necessita urgentemente.
Há um discurso de que o Brasil é um país sem memória, mas isso não é verdade. O que acontece aqui é que a memória se tornou um monopólio de pouquíssimos, seja por parte da mídia, seja pela produção de certos consensos – inclusive historiográficos – da nossa visão nacional. Muitos desses consensos sufocam e impedem a inscrição de outras memórias. Hoje, podemos observar um forte movimento de procura por novas inscrições de memórias. É só observarmos o movimento negro brasileiro, fortíssimo, divulgando livros, traduzindo, escrevendo, publicando novos romances. É só olharmos os trabalhos de autores como o Itamar Vieira Júnior. Há uma miríade de memórias, como o Walter Benjamin falava, e elas se tornam muito evidentes diante do neofascismo que vemos. É interessante que, para Benjamin, a revolução seria o momento no qual nós teríamos um acesso a todas as histórias, seria um momento de desrepressão total das histórias emudecidas. Nossos trabalhos e nossas lutas mostram que é fundamental possibilitarmos que essas histórias silenciadas explodam com as camisas de força, que elas explodam com certas visões que se afirmam como uma “verdade encobridora”, para usarmos um termo psicanalítico, do que foi e do que é o Brasil.
A sua resposta remete aos debates pela mudança de nomes de ruas, instituições e outros espaços que homenageavam militares, mas também às lutas antirracistas pela derrubada ou ressignificação de monumentos. Ao consultarmos as suas produções acadêmicas, podemos observar que tais temas já ocupam um lugar nas suas reflexões há mais de dez anos. Como o senhor analisa estas discussões hoje?
Márcio Seligmann-Silva: Tenho dito desde 2018 que as coisas que eu estudei estão voltando. Eu estudava basicamente o nazismo e a memória de ditaduras, e agora vemos quase uma espécie de fusão lamentável de elementos do nazismo e da ditatura aflorando. O movimento internacional após o assassinato do George Floyd, em 2020, produziu uma onda de derrubada e de explosão de monumentos, mas também uma explosão de consciência de que não é possível vivermos com essas imagens do terror naturalizadas. No Brasil, penso que isso ainda foi favorecido pelo fato de termos um governo bandeirante. Não me refiro só ao caso da história de São Paulo, mas penso principalmente em Brasília e na figura inominável que está lá. Podemos ver a presença de palavras de ordem que transformam tudo em commodities, ou seja, a terra precisa ser explorada até o fim, as florestas até o fim e os corpos até o fim. Esse modelo colonial de exploração sofreu um grande abalo por parte do pensamento decolonial, que está ligado a autores que eu lia e estudava no final dos anos 1990, tais como o Frantz Fanon ou o Aimé Césaire. Eles voltam a ser publicados e estudados hoje, no contexto dessa volta brutal da colonialidade, desse modelo político-econômico calcado na exploração radical da terra e dos corpos, que destrói o Estado de Direito e impõe uma corrupção moral.
Da mesma maneira, como você pode imaginar, alguém que é constante em minhas pesquisas é o Walter Benjamin. Eu reeditei e traduzi, junto com o meu querido amigo Adalberto Müller, da UERJ, sua obra Sobre o conceito de História, reunindo versões das teses de 1940, feitas durante o nazifascismo. Benjamin escreveu essas teses no sentido de produzir uma resposta ao nazifascismo – daí a total atualidade dessas teses hoje. Lembro também que Benjamin descreveu, especialmente em ensaios como O Surrealismo (1929), a necessidade da articulação de imagens para produzir “contra-imagens”, de se abrir um novo espaço imagético, Bildraum. É isso que a exposição que eu organizei com o Diego buscou fazer. Benjamin falava que esse espaço é também um espaço corpóreo, Leibraum, porque essas imagens nos atravessam, e nós vemos que muitas pessoas que visitam a exposição se emocionam, porque a arte nos constitui. A arte é um modo fundamental de se pensar. Nós falamos das novas epistemologias, mas as artes também estão sendo cada vez mais reconhecidas como novas possiblidades para pensarmos e apresentarmos diferentemente a História.
A arte nos faz observar que as inscrições históricas grafocêntricas ou livrocêntricas não são únicas, e que existem outras formas de compreensão da História que precisam ser produzidas, valorizadas e frequentadas. Isso é importante para repensarmos a História a partir de uma virada imagética que é igualmente política.
Portanto, a memória ativa é a produção de um espaço de imagem que o Benjamin chamava de Spielraum, ou seja, um espaço de ação e de jogo lúdico, como lemos no ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1935). Há também outro artigo no qual ele se refere a essa necessidade de se criar um espaço de imagem que seja um campo de ação político, que é seu O caráter destrutivo (1931). Acredito que este texto do Benjamin é pouco levado em conta por ser profundamente enigmático. É um texto que fala da destruição, de alguém que destrói tudo. Mas quando lemos O caráter destrutivo junto com o ensaio Experiência e a pobreza (1933), esses fragmentos de 1931 passam a ganhar muito sentido, sobretudo quando neste último ensaio Benjamin fala da necessidade de se construir uma nova barbárie para se produzir um novo espaço de imagem. Acabo de publicar, na Revista Concinnitas, da UERJ, um artigo meu em um dossiê sobre iconoclastia, onde desenvolvo essa questão.
Neste momento repleto de instabilidades, de ataques às humanidades, de negacionismos descarados e de revisionismos políticos, o seu recente trabalho de curadoria e a sua trajetória acadêmica parecem insistir na importância dos encontros entre a História, a Literatura e as Artes. Gostaria de finalizar esta entrevista perguntando: como o senhor vê a potência desses encontros?
Márcio Seligmann-Silva: Eu me formei em História e o professor que mais me influenciou foi o Nicolau Sevcenko, um professor que dava a maioria de suas aulas com base em imagens. Não foi por acaso que foi o Nicolau quem me falou por primeiro sobre o Benjamin, quando ele ainda estava sendo inicialmente traduzido e publicado no Brasil. O Nicolau certamente foi um modelo que tive nessa direção. Sei que existem muitos outros, mas eu penso que as disciplinas – inclusive do lugar de onde falo, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL-UNICAMP), onde sou professor na Teoria Literária – não podem ser tímidas, não podem se manter no interior de seus nichos.
O objeto que nos une é o que chamamos de Ciências Humanas, mas o que é o humano hoje não tem a ver com esses nichos que remetem às instituições do século XIX, instituições que estiveram diretamente ligadas a um projeto de dominação racial, colonial, de classe, de gênero, etc.
No caso da História, penso que ela ainda é profundamente submetida à ideia da burguesia e da nação. Ainda temos dificuldade de pensar fora dessas chaves. Lembro que, quando eu voltei do meu doutorado para o Brasil, em 1996, muitos me incentivavam a tentar ser professor no departamento de Alemão na USP, pois eu tinha feito o meu mestrado em Literatura Alemã. Recusei, assim como recusei ser professor de Literatura Brasileira. Acho bastante complicada essa limitação do que é a Literatura à batuta do nacional. Temos que dessacralizar isso, até porque se tomarmos nomes como Paul Gilroy, autor de O Atlântico Negro (1993), podemos ver nele o que Benjamin chamou de o “Anjo da história”. Gilroy percebe uma história da Modernidade colonial que ultrapassa a ideia das nações: ele pensa no ponto de vista da história do capitalismo, da modernidade e da violência.
Acredito que nomes como Foucault, entre muitos autores dos anos 1970, 1980 e 1990 também apresentaram essa visão. Benjamin se colocava contra aquilo que ele chamava de “história da cultura”, dessa grande história ufanista da nação e do povo. Afinal, o resultado disso é o absurdo de considerar que a história, a literatura e as artes dos negros e dos indígenas foram “pequenos afluentes” que adentravam no “grande rio da identidade brasileira”. A reprodução desses modelos ainda permanece sem se dar conta de como esta lógica é racista. É essencial circularmos entre as disciplinas e para além das historiografias nacionais, e o encontro da História com a Literatura e as Artes nos ajuda a romper com muitas fronteiras que só nos atrapalham.
VISITE: MemoriAntonia: por uma memória ativa a serviço dos direitos humanos
A exposição pode ser visitada de segunda a sexta-feira, das 9h às 20h, inclusive nos feriados, e nos sábados, das 10h às 18h. A entrada é gratuita. É obrigatório o uso de máscara e a apresentação do comprovante de vacinação. O Centro Universitário Maria Antônia está localizado no Edifício Rui Barbosa, na Rua Maria Antônia, 294, Vila Buarque, São Paulo. Telefone: (11) 3123-5202.
*Entrevista realizada por Gabriel Pochapski, doutorando em História na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
Como citar esta entrevista:
SELIGMANN-SILVA, Márcio; POCHAPSKI, Gabriel. “Precisamos mostrar o terror que foi a ditadura”: Entrevista com Márcio Seligmann-Silva. (Entrevista concedida a Gabriel Pochapski). História da Ditadura, 9 mar. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/precisamosmostraroterrorquefoiaditaduraentrevistacommarcioseligmann-silva. Acesso em: [inserir data].
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