Propaganda é a alma do negócio (ou sobre como a propaganda pode contar a história recente do Brasil)
A propaganda da Kombi, produzida pela agência AlmapBBDO e lançada em 2023, tinha como objetivo comemorar os 70 anos da Volkswagen no Brasil. Usando inteligência artificial, a agência recriou a imagem de Elis Regina, que, ao lado de sua filha, Maria Rita, passava pelos automóveis produzidos pela Volkswagem nos 70 anos de existência da montadora no Brasil.
Quase que imediatamente, a campanha foi alvo de muitas polêmicas. No meio publicitário, uma representação no conselho de ética foi aberta pelo CONAR. Fora dele, a comunidade de historiadores chamava atenção para a forma como o período da ditadura havia sido suavizado, especialmente depois da publicação dos relatórios que deixavam clara a colaboração da montadora com os órgãos de repressão da ditadura militar e do reconhecimento público da própria empresa acerca de sua colaboração com a ditadura.
Nesse sentido, aproveito o debate que a campanha suscitou para fazer algumas sugestões sobre como a publicidade pode ser um campo interessante de discussão sobre a história do Brasil, em especial, do Brasil recente.
Propaganda e história: “Uma boa ideia!”[1]
Quando o assunto é propaganda e história, logo vêm à mente as relações com as propagandas institucionais, produzidas por agências oficiais e governos autoritários e/ou totalitários, como o nazismo. Eu mesmo já explorei o tema em outro momento e em alguns trabalhos acadêmicos.
Dessa vez, o objetivo é outro. A sugestão é pensar a publicidade como elemento das sociedades contemporâneas, um produto que, assim como outros, dialoga profundamente com elementos da cultura, da tradição ou da política, ora tensionando estes campos, ora se aproximando deles.
Pensar a propaganda do ponto de vista histórico é ressignificar o efêmero. É lidar com um objeto cultural que é feito para não durar e que, individualizado, pode não significar muita coisa. Porém, quando aliamos publicidade e história, os resultados podem ser mais satisfatórios.
No caso do Brasil, a publicidade tem trajetória bastante exitosa. A primeira agência publicitária brasileira, a Eclética, foi inaugurada em 1914. Em 1929, chega a primeira agência estrangeira, a J. W. Thompson; em 1935, a McCann Erickson. A partir de 1950, é possível notar uma transformação radical na propaganda brasileira, com o desenvolvimento de um corpo efetivamente profissional, incluindo a formação específica, com a criação da Escola Superior de Propaganda, inicialmente, como parte do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MASP).
Refletir sobre a história do Brasil através da publicidade é estar atento a este “lugar de gente feliz” (Pão de Açúcar, final dos anos 1970), onde sonhos se realizam e desejos são estimulados, mas também é sempre ter em mente que “imagem não é nada” (Refrigerante Sprite, 1996). Ou seja, estes processos de criação são cuidadosamente pensados pelas agências na medida em que precisam dialogar com o espaço-tempo de seu público-alvo. Contudo, este público-alvo não é homogêneo: existem cortes de geração, gênero, raça, cor, identidade sexual… Existe o “moderno” e o “tradicional”, e a propaganda precisa dialogar com todas essas faixas, já que precisa ampliar ao máximo sua recepção.
Aqui, o papel do(a) historiador(a) é fundamental para amplificar a possibilidade de compreensão, uma vez que nossa especialidade é, justamente, o tempo. Vejamos: transformações econômicas e inovações tecnológicas impõem novas necessidades que serão objetos do campo publicitário. Contudo, como analisou Eric J. Hobsbawm, o tempo de outras instâncias sociais – como a cultura, por exemplo – é mais lento e ainda mantém exigências de tradições e costumes que se consolidam na longa duração.
Neste cenário, a propaganda precisa encontrar meios de diálogo entre o “novo” (quase sempre representado pela tecnologia) e o “velho” (quase sempre representado pelos costumes e tradições). Nesse sentido, as campanhas podem “fazer mágica” quando anunciam um produto extremamente novo para uma forma de consumo que mantém velhas tradições.
Vejamos o exemplo da empresa Singer e sua máquina de costura. Lançada em 1974, a propaganda mantinha a estrutura de uma família bastante tradicional, que vivia no campo. A mãe não “trabalhava fora” e mantinha as tradições da família. Contudo, o item “mágico” que destrói e mantém a tradição é justamente a máquina de costura.
Propaganda e brasilidade: “Amo muito tudo isso!”
Outro eixo que pode render análises interessantes é a oscilação da propaganda brasileira entre o estrangeiro e o nacional – ou entre o português e o inglês. Propagandas estrangeiras adaptadas pelas agências começaram a aparecer com mais intensidade depois dos anos 1950. Em 1956, por exemplo, o slogan “Coca-Cola...makes good things taste better” foi traduzido para “Isto faz um bem!”. A prática invadiu os anos 1970: o clássico slogan “have a Coke and a Smile” se tornou “Abra um sorriso!”. Mais recentemente “Open Happiness” virou “Abra a felicidade!” (2009) ou “Taste the feeling” (2016) – “Sinta o sabor!”.
Campanhas de empresas como a multinacional do ramo dos refrigerantes ou mesmo da famosa rede de fast-food McDonald’s se tornaram referências culturais da sociedade de consumo. Campanhas clássicas como o “Natal Coca-Cola” invadiram (e invadem) as cidades brasileiras com os “caminhões da Coca” desfilando e abrindo os festejos de Natal, as primeiras ainda nos anos 1990, como no vídeo destacado, de 1995.
A presença das campanhas produzidas pelas agências estrangeiras e traduzidas para o português não foi aceita sem resistências, especialmente entre os anos 1960 e 1980. Querendo participar ativamente do “país do futuro”, as agências nacionais procuravam encontrar um “estilo brasileiro de propaganda”, uma identidade. Naquele período, a busca levou parte considerável dos publicitários e publicitárias a lançarem um novo olhar sobre o Brasil, em busca da brasilidade e da originalidade.
Desde o nacionalismo ufanista, que grassou em toda uma geração de publicitários, produto dos anos do “milagre econômico” e potencializado com a imaginação das redações das agências, a propaganda brasileira ajudou a contar uma história e forjar uma memória distinta daquela da repressão e da violência: eram os “anos dourados” (CORDEIRO, 2009).
Foram inúmeros os slogans marcantes do período tais como: “Dedicação total a você” (Casas Bahia, 1970), as “1.001 utilidades” de Bombril (1978), o elogio que ganhou as ruas por meio do slogan “bonita a camisa, Fernandinho!”, da UsTop (1984). Alguns contaram com a ajuda de personagens ilustres, como a campanha da cervejaria Antárctica, estrelada por Adorian Barbosa (“Noís viemos aqui para beber ou para conversar?”, 1972). Alguns foram incorporados pela cultura, como é o caso da campanha de geladeiras Consul (“Põe na Consul!”, 1978) que se tornou símbolo de frases e/ou pensamentos jocosos.
A busca pela brasilidade, marca característica do momento em que para uma parte da sociedade brasileira o Brasil estava dando certo, fazia sentido: “Nós não somos os americanos e nem os europeus: somos os brasileiros e, como tal, temos algo que nos define”. Com esse pensamento, campanhas como a do jeans UsTop identificaram no samba e na mulher brasileira os ingredientes nacionais adequados.
Outro elemento da brasilidade foi encontrado no sincretismo entre as religiões de matriz africana e o catolicismo. Nos anos 1970, em campanha produzida para o Governo da Bahia, a agência DM9 levou Mãe Meninha do Gantois para as telas, zelando por um ano novo de prosperidade. Também podemos destacar as campanhas do grupo Bamerindus, produzidas pela agência paranaense Umuarama. No final dos anos 1970, a agência lançou a campanha “Unindo o Brasil num grande abraço”. Além das inserções na televisão, foi distribuído um long play com o hino nacional em diversos estilos musicais brasileiros, cantado e musicado por artistas do porte de Luiz Gonzaga.
O meio publicitário fez questão de dar sua contribuição para uma “propaganda brasílica” com o Prêmio “Jeca Tatu”. Criado pela agência CBBA, tinha o objetivo de premiar propagandas que utilizassem a cultura brasileira no enredo, como os jeans da UsTop.
Contudo, a imagem de um povo “diferentemente lindo” (sabonetes Albany, 2006) não era perfeita. Uma campanha chamou muita atenção. Estrelada pelo futebolista Gerson, o “canhotinha de ouro”, a propaganda ressaltava de maneira positiva um valor visto com maus olhos: o “jeitinho brasileiro” de ganhar vantagem em tudo.
A “lei de Gerson” era um daqueles defeitos que o povo brasileiro, mesmo numa leitura otimista da história do Brasil produzida pela ditadura militar (FICO, 1997), deveria eliminar. Era, portanto, parte de uma espécie de processo civilizador que a ditadura havia se incumbido de transformar.
Nova República e a propaganda brasileira
Ao final da ditadura, a busca pela brasilidade parece ter sido em grande parte abandonada – não apenas pelas agências, mas pelo refluxo da busca pela identidade enquanto parte do projeto nacional.
À esquerda, novos movimentos sociais, envolvidos em novas disputas por espaço, numa nova esfera pública que se construía na esteira dos debates da Constituição. Em parte, existiu uma mudança na estrutura da militância e dos objetivos daquela que se convencionou chamar de “nova esquerda”. Não se tratava mais da busca pelo nacional, mas de um interesse genuíno pelas diferenças culturais regionais, pelos sotaques, pelas artes descentradas que podiam, ainda, revelar o Brasil a si mesmo.
À direita, é possível perceber que os resquícios nacionalistas, dentro e fora do meio militar, foram diluídos até quase desaparecer a partir do governo Fernando Collor de Mello. Collor trouxe consigo as sementes do neoliberalismo e sua proposta estéril de um multiculturalismo vazio e apenas de discurso.
As seguidas crises econômicas (a “década perdida” de 1980 e o seu personagem, o “Dragão da Inflação”) e a morte prematura de Tancredo Neves diluíram a leitura otimista sobre o futuro. Porém, certo resquício da brasilidade e da “fé” no Brasil tentou ser retomado. Em 2005, em um esforço coordenado pela Associação Brasileira de Anunciantes (ABA), foi criada a campanha “Eu sou brasileiro e não desisto nunca”, pela agência Lew’Lara. Provavelmente, o filme mais famoso foi o que contou a história do jogador Ronaldo Nazário. É interessante notar que a primeira década dos anos 2000 foi marcada pelos dois primeiros governos do Presidente Luís Inácio Lula da Silva e sua tentativa de reestabelecer a autoestima do povo brasileiro, com projetos como a realização da Copa do Mundo de 2014 e das Olímpiadas de 2016.
A publicidade brasileira continua ativa. Agora, seus discursos são cada vez mais fragmentados, já que, como dissemos, o público é também muito diverso. Se é possível apontar um deslocamento perceptível é em relação ao meio ambiente. Não era incomum as campanhas dos anos 1970 e 1980 tratarem a natureza como uma inimiga a ser conquistada. Uma batalha onde estavam, de um lado, homens e máquinas e, de outro, a temível floresta (especialmente a Amazônica), como é possível notar em algumas campanhas de automóveis.
Houve mudanças em termos de estética, de texto e um novo cuidado com o consumidor, entendido para além da classe média alta branca brasileira. A propaganda é filha de seu tempo e, em certo sentido, responde às demandas que são por ele colocadas. É notória a pressão que as instâncias produtoras de cultura sofreram de movimentos sociais de diversos matizes para a ampliação daquilo que os imaginários produzem sobre o povo brasileiro. Esse foi o caso, por exemplo, da campanha do Dia dos Pais da Boticário, em 2017.
Porém, não nos iludamos: esta presença não é benevolência e nem ocorreria naturalmente. Ela é fruto de mudanças estruturais em alguns níveis. Primeiramente, no econômico, na medida em que setores excluídos do consumo adentram estes espaços. O segundo, tão ou mais importante, é o impacto de novos personagens que entram na cena pública e se recusam a exercer papéis historicamente determinados.
A propaganda segue o dinheiro. Por exemplo, o “pink money”, como se referem aos grupos LGBTQIA+ em condições sociais privilegiadas. Contudo, a rejeição racista a campanhas como a do Boticário demonstra a mesquinhez do projeto de nação em curso no Brasil. O capitalismo se faz pela agregação do diferente ao transformá-lo em objeto de consumo e, neste sentido, a vanguarda do atraso no Brasil parece querer levar à homogeneização, numa disputa que é, evidentemente, política.
Por fim, é claro que o texto não “é assim, uma Brastemp” (Brastemp, 1992) e nem poderia ser. Faltaram críticas, por exemplo, sobre a indústria cultural, sobre a propaganda enquanto produção do desejo e tantas outras. Estas e outras observações são pertinentes e são levadas em conta por este autor, porém, espero que as ausências suscitem curiosidades que levem o público à pesquisa.
Nota:
[1] A referência do subtítulo é da campanha da aguardente “Caninha 51”, um dos grandes slogans da publicidade brasileira, criado por uma mulher, a publicitária e artista plástica de origem suíça, Magy Imobedorf, em 1978. Ao longo do texto, outros aparecerão, sempre referenciados.
Referências:
CASTRO NETTO, David. Propaganda e legitimação na ditadura civil-militar brasileira. Curitiba: Prismas, 2016.
CORDEIRO, Janaína Martins. Anos de chumbo ou anos de ouro? A memória social sobre o governo Médici. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 22, Janeiro - Junho 2009. p. 85-104.
FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil (1969-1977). São Paulo: USP, 1996.
HOBSBAWM, Eric J. Sobre História. São Paulo: Cia das Letras, 2013.
Como citar este artigo:
CASTRO NETTO, David A. Propaganda é a alma do negócio (ou sobre como a propaganda pode contar a história recente do Brasil). História da Ditadura, 21 mai. 2024. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/propaganda-e-a-alma-do-negocio-ou-sobre-como-a-propaganda-pode-contar-a-historia-recente-do-brasil. Acesso em: [inserir data].
Comments