Quarenta horas de vibrações cívicas: imagens do Estado Novo
Atualizado: 26 de ago. de 2023
Em 18 de outubro de 1940, o então presidente brasileiro, Getúlio Dornelles Vargas, desembarcou no Campo do Ibura, no Recife. Tratava-se de sua primeira viagem como chefe da nação à capital pernambucana. A chegada do ditador foi acompanhada pelas multidões e pelas lentes da Meridional Filmes, produtora cinematográfica contratada pelo interventor do estado, Agamenon Magalhães, para registrar a grandeza do Estado Novo. Um raro registro audiovisual do regime estado-novista em Pernambuco se encontra disponível na Cinemateca Brasileira, em São Paulo.
Para compreendermos o Estado Novo, dentre tantas possibilidades de pesquisa histórica, podemos fazer uma análise do intenso uso de imagens, símbolos e discursos que cotidianamente transmitiram os ideais daquela ditadura ao povo brasileiro. Analisar o Estado Novo em Pernambuco e suas particularidades foi um dos desafios que enfrentei durante o mestrado – pesquisa recentemente publicada em livro pela Paco Editorial com o título homônimo da dissertação O Estado sob as lentes: a cinematografia em Pernambuco durante o Estado Novo (1937-1945).
Um dos meus principais objetivos sempre foi buscar compreender criticamente as imagens que nos têm sido legadas pelos regimes autoritários. Hoje, partilho neste texto um dos acontecimentos que marcaram as celebrações públicas e a construção de imagens do Estado Novo em Pernambuco.
A emoção do Estado Novo
É bem sabido que, durante a ditadura varguista, os meios de comunicação e as artes assumiram cotidianamente o papel de construir o discurso de unidade e de desenvolvimento nacional: filmes, músicas, peças teatrais, imprensa e rádio fortaleciam o discurso estado-novista perante as massas. As cerimônias públicas, em consonância com os veículos de comunicação, também forjaram apoios, de modo que as festividades assumiram um papel importante no espetáculo político (CAPELATO, 2009). Em todo o país, cerimônias eram arquitetadas para saudar o chefe da nação e os “novos tempos”.
Em Pernambuco, Agamenon Magalhães sintetizou bem os sentimentos promovidos pelo regime. Eventos, feiras, exposições e celebrações cívicas fizeram parte desse aparelho simbólico. No Recife, foram realizados, por exemplo, o III Congresso Eucarístico Nacional (1939) e a Grande Exposição Nacional (1940). Ainda que distante geograficamente desse público, a imagem de Getúlio Vargas era sempre representada: uma imagem presente, de um objeto ausente (CHARTIER, 1990, p. 21).
Enquanto presidente, contudo, Vargas nunca havia ido a Pernambuco. Em finais de 1940, organizou uma viagem presidencial ao Norte e ao Nordeste do país, visitando os estados do Pará, Amazonas, Rondônia, Ceará, Pernambuco e Bahia. Para os jornais da época, tratava de uma excursão ao “Norte”, ainda reduzindo as duas regiões do Brasil. Na passagem por esses territórios, exaltava-se os trabalhadores e a atenção que o governo federal estaria dando a esse “extremo” da pátria. O povo, “caloroso”, vivenciava aquela “vibração cívica” em torno do regime em espetaculosas celebrações, registradas em filmes e fotografias.
Sob inspiração dos regimes nazifascistas europeus, e dispondo do aparato dos meios de comunicação controlados pelo Estado, o novo regime personificou a nação na figura do presidente: Vargas passou a preencher um espaço expressivo no imaginário popular, como uma figura digna de admiração e exaltação. “Afinal”, conforme Célio da Cunha (1981, p. 33), “seu governo era autoritário, mas nacionalista. Ocupou inteligentemente um imenso espaço vazio, representado pela classe dos desprotegidos [...], que durante a República Velha tinham sido totalmente esquecidos”.
A relação com do Estado Novo com os cineastas brasileiros foi bem peculiar. Com a dificuldade em concorrer com a indústria cinematográfica hollywoodiana durante a primeira metade do século XX, o cinema brasileiro deu uma atenção especial aos documentários, cinejornais e filmes educativos. Tais gêneros foram apropriados pelo Estado e se tornaram um espaço de produção onde se realizaram as primeiras experiências de sonorização do país e a própria sobrevivência do cinema nacional.
Nos anos 1930, passou a existir no Brasil uma profunda intervenção estatal no cinema, “seja pela censura, pela estimulação da ‘boa’ indústria cinematográfica ou pela produção dos seus próprios filmes” (TEIXEIRA, 2011, p. 34). O Estado tornara-se um importante mecenas do cinema. Como nem todos os interventores federais tinham recursos técnicos para manter um laboratório próprio – como nos casos do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) e do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) –, muitos políticos contaram com o trabalho de produtoras locais na instrumentalização da propaganda e doutrinação governamental.
Esses contratos – e contatos – foram essenciais para a existência de um fazer cinematográfico especialmente distante da então capital federal, o Rio de Janeiro. Assim, predominaram os filmes de encomenda. Essas películas apresentavam as realizações públicas e cerimônias cívicas, sustentados no modo informativo do gênero que instrumentalizava a propaganda política. Foi assim que a Meridional Filmes do Recife realizou o filme Quarenta horas de vibração cívica (1940).
Eram tempos de vibrações cívicas...
Em 19 de outubro de 1940, o jornal recifense Diário da Manhã destacava a gratidão de Getúlio Vargas por sua passagem em Pernambuco, exaltando as recepções tão “unânimes e cheias de vibração cívica” (Diário da Manhã, Recife, 19 de outubro de 1940, p. 3). As manifestações durante a estadia do presidente foram relatadas, tempo a tempo: “São horas de mais intensa vibração cívica, as que o Recife está vivendo, com a participação de todas as suas classes, desde as mais abastadas às mais humildes” (Diário da Manhã, Recife, 20 de agosto de 1942, p. 8).
Durante todo o Estado Novo, encontramos o termo “vibração cívica” em diversas outras ocasiões. Na capital federal, por exemplo, o Diário Carioca exaltou a Parada da Juventude, afirmando: “a nossa capital vai assistir hoje a um espetáculo magnífico de vibração cívica: o desfile da juventude” (Diário Carioca, Rio de Janeiro, 4 de setembro de 1940, p. 1). A revista A Ordem, durante a semana da Independência, subscreve o discurso do presidente: “neste glorioso sete de setembro, cheio de vibração cívica, concito o povo brasileiro a continuar disciplinado e coeso, laborioso e confiante, porque mesmo através de riscos e provocações saberemos manter bem alta e inviolável a dignidade da Pátria” (A Ordem, Rio de Janeiro, 9 de setembro de 1941, p. 4).
A “vibração cívica” revela uma consonância com o discurso nacional efetivado pelo regime. Além disso, trata-se de uma forma de legitimar e propagandear as massas aos valores idealizados pelo Estado Novo. Não por acaso, o filme sobre a passagem de Getúlio Vargas em Pernambuco foi intitulado Quarenta horas de vibração cívica, uma menção ao tempo exato de permanência do presidente no estado. O documentário foi dirigido pelo cineasta Manuel Firmo da Cunha Neto, personagem importante da história do cinema em Pernambuco que esteve ao lado de Agamenon Magalhães produzindo documentários e cinejornais que exaltavam os feitos do Estado Novo.
Firmo Neto, como era conhecido, foi um dos principais nomes da trajetória do cinema em Pernambuco. Amazonense nascido em 1917 na cidade de Providência, chegou ao Recife durante o primeiro ano do regime estado-novista. Dois anos depois, em 1939, passou a trabalhar na Meridional Filmes, onde realizou trabalhos de fotografia, direção e cinegrafia. No início da década de 1940, junto a Meridional, Firmo Neto realizou alguns experimentos de sonorização dos filmes, que serviram de inspiração para a concretização do primeiro longa-metragem sonoro do Norte e do Nordeste do país. Firmo Neto e o também cineasta Newton Paiva, proprietário da Meridional, foram os precursores do cinema sonoro no estado com a produção do longa ficcional Coelho sai (1942), que, infelizmente, teve sua única cópia sobrevivente perdida em um incêndio.
Dentre os seus maiores registros encomendados pelo interventor Agamenon Magalhães estão a filmagens do primeiro calçamento da Avenida Caxangá no Recife e Quarenta horas de vibração cívica. Este último, trata-se de um curta-metragem sonoro de vinte e um minutos realizado em 35 mm, em preto e branco.
Os registros das visitas presidenciais eram comuns nos documentários e cinejornais da época: por onde Getúlio Vargas passou, foram produzidos filmes para exaltar a sua presença. Em novembro de 1940, a A. Junqueira Filme do cinegrafista Aristides Junqueira, de Belo Horizonte, recebeu autorização da censura para distribuir a película que mostrava a excursão de Vargas ao estado do Pará. O filme O Presidente Getúlio Vargas na Bahia, da Tupi Filmes Brasileiros, foi exibido em São Paulo no dia 25 de julho de 1941, no Broadway; o cinejornal Notícias da Amazônia nº 02 da Lux Filme, produzido na capital federal, também retratou a visita de Vargas a Belém; já o Jornal Amazonense retratou em película homônima a Visita de Getúlio Vargas à Amazônia.
Uma pesquisa junto a Filmografia Brasileira da Cinemateca Brasileira nos permite encontrar diversos títulos que correspondem à passagem de Getúlio Vargas por cidades do país, como: A visita do presidente da república a Campos (A. Botelho Filme, 1936); O Presidente da República no Sul (Cinédia, 1937); Belo Horizonte e a visita presidencial (Filmoteca Cultural LTDA., 1938); O Presidente da República em Niterói (A. Botelho Film, 1938); O Presidente Vargas em Belo Horizonte (Associação Cinematográfica de Produtores Brasileiros, 1938); O Presidente Getúlio Vargas em Poço de Caldas (Eurico de Oliveira, 1938); O Presidente Getúlio Vargas em São Paulo (Sonora, 1938); Visita do Presidente da República a Bauru (Garnier Filme Ltda., 1938); Acolhida ao Presidente Getúlio Vargas em Porto Alegre (Leopoldis Som, 1940); A visita do Presidente Getúlio Vargas a Araxá (1941); Viagem do Presidente Vargas à Ilha do Bananal (1942); O Presidente Getúlio Vargas em visita a Juiz de Fora (Carriço Filme, 1945); entre tantos outros. Todas elas acompanhadas por cinegrafistas e produtoras particulares, cujo trabalho, provavelmente, era encomendado pelas autoridades. As visitas de Getúlio Vargas também eram acompanhadas pelo Cinejornal Brasileiro, neste caso, sendo produzido pelo próprio DIP. Como no Vol. 1, Edição nº 113 (1940), que mostrou a visita do presidente a Belo Horizonte; e o Cinejornal Brasileiro V.1, n° 134 (1940) que registrou a passagem do governante pelo Mato Grosso e Goiás. Boa parte desses filmes se encontram disponíveis no Centro de Documentação da Cinemateca Brasileira (Referências da Filmografia Brasileira e do catálogo de documentação audiovisual da Cinemateca Brasileira).
A construção das imagens e dos discursos presentes nesses filmes são similares à que encontramos em Quarenta horas de vibração cívica e em outros do gênero: exaltação nacional, supervalorização da figura de Vargas, ideias de progresso e desenvolvimentismo no Estado Novo, desfiles cívicos e representações das massas.
Compõem imagens desta obra a recepção festiva e calorosa do povo pernambucano ao presidente no desfile cívico-militar, sua visita à Penitenciária Agrícola de Itamaracá, a inauguração da sede da Destilaria Central do Instituto de Açúcar e do Álcool, a homenagem dos operários da Companhia de Tecidos Paulista e a despedida do presidente.
Duas faixas colocadas próximo à Praia de Boa Viagem, região litorânea do Recife, exaltavam: “a família pernambucana saúda o chefe nacional” e “o presidente Vargas colocou a família sob a proteção do Estado”. Porém, ao mesmo tempo em que as imagens exaltavam o presidente Vargas, também louvavam o interventor federal. No Cabanga, outro bairro do Recife, após passar por uma homenagem dos pescadores, a comitiva encontraria a faixa “aqui começou a luta contra o mocambo”. Uma imagem evocando o principal carro-chefe da política de Agamenon, o qual implementou uma série de mudanças urbanas higienistas, retirando da região central da cidade os mocambos e transferindo os moradores para vilas populares distante do centro da cidade. Na Rua Imperial, o tema do mocambo seria novamente retomado com a frase “Pernambuco era conformismo do mocambo, hoje é luta contra mocambo”.
Exaltam-se os supostos avanços do governo: “petróleo”, “carvão”, “secas”, “reflorestamento”, “crédito”, “saneamento dos alagados”, “casa operária”, “justiça social”, “proteção ao trabalho”, “proteção à família”, “recenseamento”. Dentre as mensagens, uma com os dizeres “não há problemas para o Estado Novo”. E, assim, através das vibrações cívicas das multidões em cena, procuravam as imagens do cinematógrafo atestar.
O Recife e as imagens sobreviventes
O Recife que Vargas viu permanece nas imagens sobreviventes, registradas com distintos olhares, por diferentes agentes. Estas imagens nos permitem o reconhecimento de uma construção política característica do Brasil do Estado Novo. Algumas delas ainda merecem mais e mais atenção. Dentre tantas questões incitadas pelas imagens audiovisuais do Estado Novo em Pernambuco discutidas em meu livro, O Estado sob as lentes, Quarenta horas de vibração cívica é o filme que mais me chamou atenção – seja pela raridade da obra, seja por sua importância para a história do cinema em Pernambuco ou mesmo pela representação dos discursos estado-novistas com a presença do presidente.
As imagens aqui apresentadas são carregadas de inúmeros símbolos que ressaltam uma arquitetura de significados fortalecedora do Estado Novo no imaginário social. Vale destacar que se trata ainda do trabalho de homens ordinários, de cinegrafistas como Firmo Neto, que fizeram na operação das câmeras a construção de uma imagem do Estado Novo, um cinema-memória que hoje permanece vivo, aberto a novas significações, estudos e experiências. Um cinema aberto às nossas provocações.
Aos interessados pelo tema, convido à leitura e ao diálogo com o livro O Estado sob as lentes: a cinematografia em Pernambuco durante o Estado Novo (1937-1945). Que as imagens sobreviventes, ou mesmo as que não sobreviveram, continuem instigando os debates.
REFERÊNCIAS:
CAPELATO, Maria Helena. Multidões em cena: propaganda política no varguismo e no peronismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
CAPELATO, Maria Helena et al. (Org.). História e Cinema: dimensões históricas do audiovisual. São Paulo: Alameda, 2011.
CHARTIER, Roger. História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; Lisboa: Difel, 1988.
CUNHA, Célio da. Educação e autoritarismo no Estado Novo. São Paulo: Cortez, 1981.
NASCIMENTO, Arthur Gustavo Lira do. O Estado sob as lentes: a cinematografia em Pernambuco durante o Estado Novo (1937-1945). Jundiaí: Paco Editorial, 2021.
TEIXEIRA, Clara Alves. Cinejornal brasileiro: a documentação do esporte no Estado Novo em comparação com a estética de Leni Riefenstahl. 153 f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011.
Créditos da imagem destacada: Foto oficial de Getúlio Vargas, presidente do Brasil entre 1930 e 1945 e entre 1951 e 1954. Data: cerca de 1930. Galeria de presidentes. Governo do Brasil. Wikimedia Commons.
Como citar este artigo:
NASCIMENTO, Arthur Gustavo Lira do. Quarenta horas de vibrações cívicas: imagens do Estado Novo. História da Ditadura, 10 out. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/quarentahorasdevibracoescivicasimagensdoestadonovo . Acesso em: [inserir data].
Comments