(R)existências: o esquema do cônsul uruguaio
Após o golpe de 1964, o Rio Grande do Sul passou a ser visto, tanto por setores opositores à nova ordem, quanto pela ditadura, como um espaço de extrema importância estratégica que deveria ser observado de perto. Alguns elementos contribuíram para essa categorização, sendo o principal deles a vasta fronteira gaúcha com os países platinos, que se configura em um espaço de forte sociabilidade e integração de fato, onde as práticas ancestrais do savoir-passer são constitutivas da identidade de seus habitantes. Além disso, também era motivo de preocupação, por parte dos militares, o expressivo número de exilados brasileiros que se encontravam em solo uruguaio. Dentre esses estavam o ex-presidente João Goulart e importantes lideranças do governo deposto, como, por exemplo, Leonel de Moura Brizola, figura que despertava fortes simpatias entre os gaúchos.
Brizola fora o responsável por articular a Campanha da Legalidade em 1961, que garantiu a posse de Jango após a renúncia de Jânio Quadros. Foi Brizola que, novamente, em 1964, articulou, sem sucesso, os primeiros intentos de resistência ante a ameaça golpista que se encaminhava. Esse histórico do ex-governador gaúcho fez com que, no exílio, se formasse, ao seu redor, um grupo bastante heterogêneo em termos de formação ideológica, mas que se conectava a partir do entendimento de que havia a necessidade de se articular um movimento de resistência e de derrubada dos militares.
Assim, o grupo protagonizou três episódios insurrecionais: Operação Pintassilgo (1964) [1], Guerrilha de Três Passos (1965) e Caparaó (1967), sendo este último o mais expressivo e duradouro deles. Para que tais articulações pudessem chegar aos seus objetivos, foi necessário um esquema que possibilitasse o contato entre a militância exilada e seus apoiadores no Brasil. Com isso, o Grupo Brizola contava com “entendimentos” nas fronteiras entre os dois países.
Um desses entendimentos encontrava-se em Jaguarão, município gaúcho que faz divisa com a uruguaia Rio Branco, no departamento de Cerro Largo. Era o cônsul privativo Jorge Bittar. De origem libanesa, o uruguaio Jorge possuía forte laços com a comunidade local, pois seus pais eram donos do único hotel existente em Rio Branco naquela época, e de mais alguns imóveis de ambos os lados da fronteira, o que fazia com que residissem e partilhassem do cotidiano local havia alguns anos. Quanto à carreira diplomática de Jorge, este exerceu a função de cônsul privativo em Jaguarão no começo dos anos 1960, sendo posteriormente, em 1965, transferido para a fronteira entre o Uruguai e a Argentina.
Todavia, no curto período em que permaneceu à frente do consulado local, durante a ditadura, Jorge auxiliou diversos perseguidos políticos que necessitavam passar para o Uruguai. Ele oferecia fundos materiais para as passagens até Montevidéu, disponibilizava hospedagens no hotel de sua família e, valendo-se de sua imunidade diplomática, até mesmo abrigava perseguidos dentro do consulado, para posteriormente transladá-los para o outro lado da fronteira. Assim funcionou o esquema de Travessia que ficou conhecido pela repressão como “esquema do cônsul”.
Por meio desse esquema, passaram diversos nomes de peso do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) gaúcho: José Wilson da Silva (o Tenente Vermelho); Índio Brum Vargas e o sargento Amadeu da Luz Ferreira – um dos comandantes militares da Guerrilha do Caparaó. Segundo relato de Ferreira à imprensa paranaense, os sargentos que estavam envolvidos nos preparativos para o levante estiveram em contato com Brizola durante todo o tempo, primeiramente em Montevidéu, e, também, após seu confinamento em Atlântida,
[...] para chegar ao Uruguai, Brizola tinha um esquema de fronteira que utilizava o cônsul uruguaio em Jaguarão (RGS). Conta Amadeu Felipe que nesse consulado o viajante que, ao invés de pedir visto de entrada no Uruguai apresentasse uma senha, era imediatamente conduzido a uma porta secreta a uma garagem totalmente fechada. Dali, no porta-malas acolchoado do carro americano do cônsul, o clandestino entrava no Uruguai, sem revista na ponte. No outro lado o carro entrava em outra garagem fechada de um hotel do esquema e o viajante ficava em um apartamento, já como hóspede.[2]
Embora gozasse de imunidade diplomática, as movimentações do cônsul pela fronteira eram observadas de perto pelas forças repressivas, principalmente pelo expressivo número de hóspedes brasileiros que se encontravam no hotel de sua família desde o golpe. Nesse cenário, em outubro de 1964, o cônsul resolveu denunciar ao chanceler uruguaio as “frequentes violações do território uruguaio por soldados brasileiros”[3]. Entretanto, com base no mesmo documento, o embaixador brasileiro no Uruguai, Pio Correa, conseguiu reverter a situação gerada pelo cônsul, passando assim de acusado a acusador diante do chanceler. De acordo com o relatório secreto do Ministério das Relações Exteriores:
Ao embaixador do Brasil pareceu estranho que infração tão grave partisse do representante consular instalado em território brasileiro e não de autoridades uruguaias em Rio Branco, foco das alegadas violações, e que poderiam com facilidade controlar o movimento de tais incursores. Solicitado a pormenorizar a informação para que se procedesse a uma rigorosa apuração do fato no Brasil, o chancelar uruguaio acabou por recusar e taxou o cônsul em Jaguarão, textualmente, de louco e com respeito a sua acusação disse “provavelmente tratar-se de fantasia”.[4]
Como um castelo de cartas, a aparente blindagem ao redor de sua figura durou pouco tempo, e logo o cônsul uruguaio passou a ser vigiado de perto pelos setores militares destacados para a fronteira. Conforme nos relatou seu motorista [5], ao rememorar uma das viagens feitas a bordo do carro oficial entre as duas cidades. Naquela ocasião, ele acabou tendo problemas com os militares brasileiros que solicitaram a revista do carro oficial, quando ele tentava atravessar a Ponte Internacional Barão de Mauá.
Diante dessa informação, cabe destacarmos que os cônsules gozam de imunidade diplomática. Logo, o carro oficial, devidamente registrado, tem livre circulação mesmo que o diplomata não se encontre em seu interior. Assim, a postura do sargento que realizou a abordagem – aproveitando-se da ausência de Jorge em veículo – e exigiu de seu funcionário a revista do automóvel demonstra que um certo nível de desconfiança já havia se instalado entre os setores militares locais. Com isso, podemos inferir que, aparentemente, as forças repressivas só estavam esperando uma oportunidade para averiguar suas suspeitas de uma forma que trouxesse menos prejuízo às relações entre os dois países, ou seja, em um momento em que o cônsul não estivesse presente e, portanto, não houvesse necessidade de interpelá-lo.
Outro elemento a ser analisado é a indicação de que no porta-malas do carro caberiam até quatro pessoas, frase essa que pareceu estar solta no relato de nosso colaborador. No entanto, esta nos diz muito sobre o tipo de atividade a qual o carro oficial também se prestava, pois vai ao encontro das informações postas pelo sargento Amadeu Felipe sobre o esquema do cônsul.
Ao mesmo tempo, como já dito, as suspeitas despertadas por Bittar não afetavam apenas setores militares locais: os órgãos de informação da ditadura também estavam com seus olhos voltados para o cônsul uruguaio. Em telegrama datado de abril de 1965, Pio Correa assinala a necessidade de substituir Bittar devido a sua atuação nas Travessias, uma vez que “documentos em meu poder, inclusive depoimento escrito de testemunhas [...], provam a cumplicidade do então cônsul uruguaio em Jaguarão, no trânsito clandestino de asilados brasileiros pela fronteira”. [6]
Confirmando a informação levantada pelo embaixador, este é o relato do sargento Amadeu Felipe: “o esquema foi descoberto pelas Forças Armadas do Brasil, mas jamais tornado público. Numa das prisões de alguns que haviam conhecido o sistema, houve delação e o cônsul foi removido pelas autoridades de seu país para a fronteira com a Argentina”. [7] Assim, em junho de 1965, Jorge Bittar Abdala deixava de vez o Brasil.
Com a partida do cônsul, as Travessias continuaram a ser feitas por seu motorista, que, sendo um dos taxistas da praça central de Jaguarão, tornou-se o contato direto de Brizola na fronteira. Assim, o esquema foi reformulado. Esta mudança de estratégia será o tema dos próximos textos desta coluna.
Notas:
1. Tentativa de reedição da Campanha da Legalidade (1961). Presumindo apoio popular-militar, Brizola planejava a tomada do Palácio Piratini, contando com a simpatia da Brigada Militar gaúcha, e a tomada do Quartel da Polícia do Exército. Devido às sólidas bases de apoio trabalhista, o levante deveria começar pelo Rio Grande do Sul. Entretanto a missão fora abortada antes de nascer, pois muitos dos emissários destinados a fazer contatos com as bases no Brasil foram pegos pela repressão.
2. Arquivo Nacional. Fundo: Divisão de inteligência do departamento da polícia federal. BRDFANBSBZD. p. 5.
3. Arquivo Nacional. Fundo: Divisão de Segurança de informações do Ministério das Relações Exteriores. BR DFANBSB Z4. p. 25.
4. Arquivo Nacional. Fundo: Divisão de Segurança de informações do Ministério das Relações Exteriores. BR DFANBSB Z4. p. 26-27.
5. Entrevista realizada pela autora com José Francisco Gomes Mendes, o Senhor 057, na cidade de Jaguarão em 2020.
6. Arquivo Nacional. Fundo: Divisão de Segurança de informações do Ministério das Relações Exteriores. Dossiê: Asilados Brasil/ Uruguai. p. 157. Localização: BR DFANBSB Z4.rex.adp.60.
7. Arquivo Nacional. Fundo: Divisão de inteligência do departamento de polícia federal. p. 5. Localização: BRDFANBSBZD.
Referências:
DORFMAN, Adriana. A cultura do contrabando e a fronteira como um lugar de memória. Estudos Históricos, n. 1, maio de 2009.
GONÇALVES, Darlise Gonçalves de. Acolhei aos perseguidos: As redes de mobilidade que salvaguardavam vidas na fronteiriça Jaguarão (1964-1975). Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2022.
_____________. “Apesar de cônsul, incitou a resistência”: um estudo de caso da diplomacia consular das cidades de Jaguarão-Rio Branco atuante na rede de apoio a Leonel Brizola. Revista Escritas do Tempo, v. 4, n. 12, set-dez/2022, p. 152-170.
LEITE, Maria Claudia Moraes. A trajetória política de Leonel de Moura Brizola no exílio uruguaio (1964-1977). Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2015.
MAZZEI, Enrique. Fronteras que nos unen, límites que nos separan. Montevideo: Imprenta CBA, 2012.
RICARDO, Claudio Maria. Travessia – o protagonismo da fronteira Jaguarão-Brasil/ Rio Branco-Uruguai na rota dos passageiros da liberdade durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1973). Jaguarão, 21/09/2018. Entrevista concedida a Darlise Gonçalves de Gonçalves.
SENHOR ZERO CINQUENTA E SETE. Acolhei aos perseguidos: as redes de mobilidade que salvaguardavam vidas na fronteiriça Jaguarão (1964-1975). Jaguarão, dezembro de 2020. Entrevista concedida a Darlise Gonçalves de Gonçalves.
SILVA, José Wilson da. O tenente vermelho. Porto Alegre: Editora Tchê, 1987.
VARGAS, Índio. Entrevista feita por Davi Arenhart Ruschel. In: Anexos, RUSCHEL, Davi Arenhart. Entre risos e prantos: as memórias acerca da luta armada contra a ditadura no Rio Grande do Sul. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2011.
Como citar este artigo:
GONÇALVES, Darlise. (R)existências: o esquema do cônsul uruguaio. História da Ditadura, 8 jan. 2024. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/r-existencias-o-esquema-do-c%C3%B4nsul-uruguaio. Acesso em: [inserir data].
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