Racismo ambiental: entre epidemias passadas, contemporâneas e futuras
Atualizado: 27 de out. de 2022
Quando termina uma epidemia? Esta tem sido uma questão recorrente para vários setores da sociedade e foi tema de um artigo recente do cientista político Gilberto Hochman. Arriscando uma resposta direta – mas não simples –, uma epidemia só termina quando todos os seus efeitos puderem ser medidos e avaliados, para que seja possível se realizar a retrospecção do ocorrido – última fase da chamada “dramaturgia das epidemias” elaborada por Charles E. Rosenberg e recorrentemente citada por historiadores. Nesta fase, ocorre o abrandamento do surto, a avaliação e reflexão coletiva sobre o evento e a adoção de medidas sanitárias permanentes. O fim de uma epidemia, portanto, depende de muitos fatores, constituindo-se como um processo ao mesmo tempo social, político, biológico e cultural.
No cenário caótico da pandemia de Covid-19, que eclodiu no final de 2019, uma das principais contribuições da Organização Mundial da Saúde (OMS) tem sido chamar atenção para a relação do episódio epidêmico com as questões ambientais. Em entrevista ao jornal El País, a médica María Neira, diretora de Saúde Pública e Meio Ambiente da OMS, afirmou que “70% dos últimos surtos epidêmicos começaram com o desmatamento”. Neste sentido, caso não sejam tomadas medidas imediatas para mitigar os impactos das pressões humanas sobre o meio ambiente, o surgimento de novas epidemias pode ser inevitável.
A pecuária, a agricultura em larga escala, a grande emissão de dióxido de carbono pelas indústrias e a queima de combustíveis fósseis têm sido os grandes responsáveis pelo agravamento da situação – e alguns de seus impactos são irreversíveis. O desequilíbrio ecológico expõe as populações humanas a situações de vulnerabilidade epidemiológica diante do contato com novos agentes patológicos, mas também revela aspectos culturais da nossa sociedade que precisam rapidamente ser repensados, tais quais a forma como temos nos relacionado com o planeta e o modo como enfrentamos marcadores da diferença entre as populações humanas.
Embora o tom de surpresa sobre epidemias seja recorrente, sua relação com o grave cenário de degradação ambiental e a maior vulnerabilidade epidemiológica de populações pobres são elementos imbricados em nossa história. Existem semelhanças óbvias entre a epidemia de Covid-19 e outras emergências epidêmicas que já ocorreram. Estudos em história da saúde pública revelam que, apesar da interdependência sanitária existente entre os diferentes setores da sociedade, os efeitos de uma doença não são sentidos da mesma maneira em cada um deles, segmentos mais pobres seguem sendo os mais afetados.
Os ecos do passado e do presente
Nesse sentido, uma das principais contribuições da historiografia consiste em identificar as condições sociais que historicamente tornam essas parcelas da sociedade mais vulneráveis em cada conjuntura. A experiência de duas epidemias provocadas por subtipos do vírus influenza que ocorreram no século XX – as epidemias de 1918 (H1N1) e de 1957 (H2N2), conhecidas como “gripe espanhola” e “gripe asiática”, respectivamente – caminham neste sentido.
Nas duas ocasiões, o Brasil vivia momentos completamente distintos, o que exige cautela quando comparamos os dois episódios. Se, em 1918, o país contava com uma população de cerca de trinta milhões de pessoas e, em termos de saúde pública, os estados brasileiros estavam dispersos e mal articulados; em 1957, por sua vez, o país já contava com uma população de sessenta milhões de habitantes e um Ministério da Saúde. Entretanto, isso não significou que o Ministério teve proeminência durante a emergência sanitária de 1957: não foi possível, por exemplo, promover a vacinação em larga escala para a população.
A epidemia de 1918 é reconhecidamente uma das mais letais da História. As estimativas indicam entre vinte e cem milhões de óbitos ao redor do mundo. Quarenta anos depois, ocorreu a epidemia de 1957, que teve grau de letalidade inferior a primeira. Nesse último período, a produção de respostas eficazes à situação foi rápida, especialmente devido à tecnologia biomédica. O mundo já contava com antibióticos e vacinas contra o vírus influenza que foi identificado e isolado por cientistas britânicos apenas na década de 1930. A vacina contra a epidemia de 1957 foi desenvolvida no mesmo ano na Inglaterra e se tornou a principal aposta das autoridades mundiais de saúde no controle da epidemia. A estimativa é que a H2N2 tenha levado a óbito de dois a quatro milhões de pessoas em todo mundo.
O elo comum entre os dois episódios epidêmicos, sem dúvida, refere-se à dimensão ecológica, pois as epidemias são resultado direto das relações entre seres humanos e aquilo que Donna Haraway chamou de outras “espécies companheiras” com as quais compartilhamos o mundo. Agentes parasitários – como os vírus – são algumas dessas espécies. Em 1918, o país vivia a busca pela modernização, especialmente no que se referia à construção de obras civis e ferrovias para integrar os seus vastos sertões. Este processo trouxe não apenas os resultados desejados, mas também impactos ambientais e problemas de saúde pública. Nos anos 1950, o país seguiu apostando na construção de grandes obras civis e seus efeitos também não se deram apenas em termos econômicos e sociais, mas em relação ao meio biofísico brasileiro e, consequentemente, na saúde da população.
Os dois episódios epidêmicos se assemelharam tanto na adoção de medidas de controle como também em relação a sua alta incidência e mortalidades principalmente sobre os setores mais pobres da população. Na cidade do Rio de Janeiro, capital federal do país na ocasião da epidemia de 1918, apesar da impressão difundida na época de que nenhum bairro ou camada social escaparia da doença – aspecto que teria lhe dado o epíteto de “democrática” –, a carência de recursos entre as classes pobres determinou que elas fossem as mais atingidas. Tais classes eram menos beneficiadas pelas ações sanitárias, que deram preferência ao centro carioca.
Durante a epidemia de 1957, a “geografia da gripe” atingiu as favelas do Rio de Janeiro e estados nordestinos como Ceará e Maranhão. Como foi frisado na imprensa brasileira, as pessoas morreram não apenas pela doença, mas também pela fome. Em edição de 28 de agosto de 1957, o jornal maranhense O Pacotilha destacou no artigo intitulado “Singapura” – um dos nomes pelo qual a pandemia de 1957 ficou conhecida – que “[...] chegava a ser ridículo o pregão antigripal que recomendava o uso de alimentação abundante como preventivo da ‘asiática’, quando, por acréscimo, nenhum passo era dado pelos órgãos categorizados no sentido de tornar acessível ao povo o abastecimento de gêneros de mais gritante necessidade”.
A historiografia tem discutido que, durante epidemias – seja a atualmente em curso, seja nas anteriores –, é preciso considerar mais do que as tecnologias disponíveis: devemos nos atentar aos aspectos que, em cada conjuntura, seguem contribuindo para aumentar exponencialmente os efeitos da doença sobre os mais pobres. Ao lançar luz sobre as condições estruturais e culturais do país, o conhecimento histórico nos ajuda a refletir sobre a medida em que as respostas apresentadas no contexto atual são eficientes. Assim, é possível constatar que o fato de que as sistemáticas deficiências no saneamento básico, na falta de campanhas educativas, de políticas públicas de assistência, de acesso aos recursos naturais, entre outros aspectos fundamentais para boas condições de vida, têm nome: “racismo ambiental”.
Embora esse conceito seja recente, o racismo está entranhado não apenas nas instituições e relações do trabalho, mas também na forma como interagimos com o meio biofísico. O racismo ambiental relega sistematicamente as populações de baixa renda, os grupos raciais discriminados, os povos étnicos tradicionais e os bairros operários a situações de risco como a falta de habitação adequada e saneamento básico e uma maior exposição a resíduos industriais tóxicos e ilegais. Tais elementos favorecem a proliferação de uma doença em determinados grupos.
As implicações do racismo e da injustiça ambiental são observáveis não apenas quando barragens se rompem ou resíduos tóxicos são diluídos em rios, mas também quando periferias e favelas se caracterizam pelo menor acesso a serviços de saúde, energia elétrica, água potável ou quando não têm garantido sequer o uso regular do álcool em gel 70% para a higienização das mãos contra o vírus causador da Covid-19. As precárias condições de moradia muitas vezes obrigam famílias inteiras a viverem em poucos cômodos, contribuindo para a aglomeração, sem condições de praticar o distanciamento físico.
Em um país com um passado escravista como o Brasil, onde esse sistema imoral durou quase quatrocentos anos, o Estado segue, junto às suas elites, sendo habilidoso em perpetuar as desigualdades que inevitavelmente contribuem para matar e expor segmentos da população. O racismo em suas várias dimensões, incluindo a ambiental, tem sido um dos seus instrumentos mais bem sucedidos para essa empreitada. Não por acaso, a primeira vítima da epidemia de Covid-19 no país foi uma empregada doméstica negra de sessenta e três anos. Ou ainda que a população negra seja a mais afetada pela doença, lidere o índice de desempregados, dos mais afetados por insegurança alimentar e dos que têm menos acesso a serviços básicos de saúde ou a recursos naturais, como água potável.
Por fim, a nossa crise não é apenas ambiental e sanitária: ela é civilizacional. Reformas profundas precisam ser postas em prática, desde a forma como temos nos relacionado com o meio biofísico, mas também no modo como a sociedade vem enfrentando problemas sociais como o racismo, as desigualdades econômicas e sociais. Por isso, cabe ressaltar que não há saída individual para a crise atual: quaisquer que sejam as soluções tecnológicas, sem modificações nas condições de vida dos pobres, estes seguirão pagando um preço maior pela epidemia ainda em curso e por outras que – como a OMS tem alertado – estão por irromper devido às mudanças ambientais.
A inclusão do racismo ambiental na agenda pública do Estado será determinante na retrospecção sobre os efeitos da pandemia de Covid-19, bem como no enfrentamento de epidemias futuras, constituindo-se como categoria de entendimento fundamental para garantia da sobrevivência de grupos sociais cujas vidas, entre epidemias passadas, contemporâneas e futuras, seguem sendo exterminadas.
* Versão adaptada de texto publicado originalmente no Portal Geledés.
Créditos da imagem destacada: Vanda Ortega Witoto, líder indígena e técnica de enfermagem, no auge da pandemia da Covid-19 no estado do Amazonas. Alex Pazuello/ Senado Federal. Creative Commons.
REFERÊNCIAS:
BONILLA, Juan. Diretora de Meio Ambiente da OMS: “70% dos últimos surtos epidêmicos começaram com o desmatamento”. El País, 2021.
BRITO, Nara Azevedo de. La dansarina: a gripe espanhola e o cotidiano na cidade do Rio de Janeiro. História, ciências, saúde-Manguinhos, v. 4, p. 11-30, 1997.
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RIBEIRO, Stephanie. Racismo ambiental: o que é importante saber sobre o assunto. Portal Geledés, 2019.
ROSENBERG, Charles E. et al. Explaining epidemics. Cambridge University Press, 1992.
Como citar este artigo:
SOUZA, Ramon Feliphe. Racismo ambiental: entre epidemias passadas, contemporâneas e futuras. História da Ditadura, 25 out. 2022. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/racismo-ambiental-entreepidemiaspassadas-contemporaneas-e-futuras. Acesso em: [inserir data].
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