Resenha de livro: Ditadura e Democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988 (Daniel A
Atualizado: 15 de out. de 2020
Margens do passado, limites do presente? Identidade, democracia e ditadura na história recente do Brasil.*
O acréscimo de uma nova década, entre o tempo presente e o ano de 1964, anunciou-se por meio de um vasto conjunto de ações comemorativas. Dentre as iniciativas mais visíveis, pode-se destacar a realização de diversos seminários temáticos, o lançamento de vários livros sobre o tema e, até mesmo, a exibição de uma faixa, que flamulando nos céus da praia de Copacabana, provocou reações diversas nos olhares curiosos que acompanhavam o pequeno avião, que fora silenciado pela agitação do domingo de sol, em seu percurso entre as duas pontas da praia carioca.
Na maior parte das vezes, essas ações comemorativas foram tomadas no sentido etimológico do termo: rememorar juntos, recordar coletivamente os eventos que culminaram no golpe desferido naquele remoto abril de 1964. Todos esses eventos nos convidam à reflexão acerca dos significados simbólicos das comemorações no tempo presente. Nessas oportunidades, o aflorar das memórias parece ressaltar uma contradição insolúvel: à medida que Cronos, implacável, acrescenta anos, décadas e, até mesmo séculos, entre o tempo presente e o tempo passado – objeto de rememoração – ao afastamento cronológico parece opor-se certa proximidade sentimental.
Em resumo, isso ocorre em virtude da permanência de disputas memoriais que desafiam concepções aparentemente arraigadas. Ao mesmo tempo, nos países que experimentaram transições políticas inconclusas, nas quais os crimes praticados por agentes estatais permanecem sem resposta adequada, a passagem do tempo constituiu-se impeditivo extra para a aplicação da justiça.
De todo modo, o imprevisível nos surpreende a todos com o ímpeto dos problemas inesperados e passa a exigir explicações plausíveis ao encadeamento das ações humanas no decorrer do tempo. Há, portanto, um espaço vazio; dir-se-ia um vácuo explicativo. Compete à narrativa histórica recheá-lo de sentido, ainda que provisório: a História é o tempo encadeado em explicações satisfatórias e provisórias.
Dentre as ações comemorativas, nesses 50 anos do golpe civil-militar de 1964, encontra-se a publicação da obra Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988. A obra do historiador Daniel Aarão Reis Filho situa-se entre os eventos que contribuem para o preenchimento dos vazios de sentido que nos convidam à reflexão. O convite estendido pelo professor titular de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF) está lançado. Aceitá-lo significa atribuir sentido aos vazios que nos são apresentados pelo tempo presente, ao encararmos essas cinco décadas que, ao mesmo tempo, nos separam e nos aproximam de 1964.
A obra em tela pode ser agregada em torno de três seções, ao longo das quais o autor propõe análises refinadas sobre os diferentes aspectos da formação histórica e social da ditadura inaugurada em 1964. Na primeira parte, correspondente ao capítulo de abertura do livro, o autor introduz um conjunto de reflexões acerca das limitações impostas por uma memória hegemônica, cultivada por amplos setores da sociedade brasileira. Para o professor da UFF, essa memória representa óbice às análises que buscam compreender as bases sociais do regime ditatorial inaugurado no início da década de 1960.
Uma incômoda e contraditória memória. Com esses termos, o professor Daniel Aarão inaugura sua proposta de análise das oscilações da memória hegemônica sobre o golpe de 1964 e, ao mesmo tempo, sobre as análises saturadas de memória que fixaram, em certo momento, um modelo analítico que parece informar boa parte dos esforços de compreensão do último ciclo ditatorial vivido pela sociedade brasileira.
Na crítica do autor, ao analisarmos as alterações do discurso político hegemônico, tomando como objeto de análise as celebrações ocorridas nos aniversários do golpe, tem-se a impressão de que as memórias prevalecentes parecem viajar em um pêndulo invisível, que se desloca em sentido único, rumo ao progressivo retraimento dos indivíduos que se identificavam com a ditadura de abril de 1964. Ao deslocar-se nesse sentido, de acordo com o professor Aarão Reis, a sociedade brasileira optou por demonizar a ditadura dos anos recentes. Estavam dadas as condições para a celebração de novos valores democráticos, por intermédio da valorização de memórias apaziguadoras que reservassem espaços mais cômodos para o conjunto social do país.
Nesse ponto, deparamo-nos com o primeiro aspecto polêmico da tese de Aarão. Na visão do historiador, ao erigir como memória hegemônica a narrativa que situava em lados opostos opressores e oprimidos, em uma construção dicotômica pouco afeita à realidade nacional, a análise das bases sociais da ditadura restou subtraída. Esse modelo explicativo, consolidado a partir da fórmula sugerida pelo Projeto Brasil: Nunca Mais, possibilitou a difusão da crença de que a noção democrática teria, entre nós, autênticas raízes históricas.
É nessa chave explicativa que podemos compreender, por exemplo, a reinterpretação da luta revolucionária contra a ditadura, que passaria a ser narrada como uma resposta inevitável ao fechamento do regime; nas palavras do autor, por intermédio desse modelo narrativo, o próprio regime passaria a ser o responsável pela luta armada.
Na segunda parte da obra, que se estende do capítulo dois ao capítulo seis, o professor Daniel Aarão sustenta sua tese inicial, por intermédio do estudo de um conjunto complexo de temas variados. Assim, em um primeiro momento, o autor debate os processos históricos e culturais que possibilitaram a instauração da ditadura. Nessa análise, de forma sucinta, o historiador desenvolve narrativa que procura inserir os acontecimentos locais no contexto internacional e no quadro geral dos movimentos sociais, que marcaram a década de 1960. Em seguida, valendo-se do conceito desenvolvido por Elio Gaspari, o autor procura lançar luz sobre as contradições iniciais de uma ditadura envergonhada, que parecem marcar os dois primeiros governos ditatoriais entre 1964 e 1969.
Os governos Castelo Branco e Costa e Silva, no entendimento do autor, traduzem as oscilações de um regime autoritário recém-instalado, que procurava consolidar-se, nesse primeiro momento, por meio da definição de uma identidade legitimadora. Essa proposição sugere duas reflexões que merecem análise mais extensa.
Em primeiro lugar, o professor Daniel Aarão assinala que a composição heterogênea de sustentação do movimento civil-militar, que pôs fim ao governo Goulart, recorreu a um recurso já conhecido na história pátria: o medo. Naquele início de 1964, a possibilidade de radicalização das legítimas demandas sociais que propunham uma nova ordem na distribuição do poder, foi argamassa que selou quadro tão variado de personagens e, que tornou possível a formação de ampla aliança social.
A argumentação de Aarão responde negativamente a um tema tão discutido nos debates acadêmicos recentes; qual seja: estaria a ditadura inscrita no golpe desfechado em abril de 1964? Não. Para o autor, o caminho que conduz o movimento civil-militar de 1964, nascido sob a ótica da “salvação democrática”, para a ditadura, foi pontuado de tropeços políticos, incompatibilidades inconciliáveis e a incapacidade de construir um projeto comum após a vitória dos golpistas.
A segunda questão, ensejada por essa linha argumentativa – que poderíamos elencar como a segunda questão polêmica levantada pelo autor – se relaciona às margens cronológicas da ditadura civil-militar. A definição dos limites que abrangem o regime instalado em 1964 não representam meramente recursos metodológicos e práticos para o ensino e a aprendizagem da história; tampouco, esse debate deve ser tratado como mera questão nominalista. As escolhas das margens que balizam a ditadura instalada no país, embora construídas por intermédio da pesquisa histórica, são, inegavelmente, uma escolha política diante do fenômeno colocado sob as lentes do historiador.
Na proposta do livro em tela, o autor expande as fronteiras cronológicas da ditadura até o ano de 1979 (1964-1979). As escolhas de Aarão são analisadas com profundidade. Para o historiador, a escolha tradicional do período que se estende de 1964 a 1985 representa uma tentativa de encobrir a participação civil em todas as fases da construção do regime autoritário. Para o autor, desde o início dos anos 1980, parece prevalecer narrativa ancorada em raciocínios polarizados, que servem ao propósito de contar a história da ditadura como uma longa noite que se abateu sob o povo oprimido; nasce, na visão de Aarão, a ideia de que a sociedade brasileira apenas suportara a ditadura.
Para além desse argumento, Aarão sustenta que os instrumentos legais, que foram instituídos ao longo dos anos pelo regime de poder, perderam sua eficácia jurídica a partir de 1979. De fato, no governo Geisel foi editado, em outubro de 1978, a emenda constitucional número 11 que determinava, em seu artigo 3º, a revogação de todos os atos institucionais (o AI -5, por exemplo) no que contrariassem a constituição editada em 1969. Além disso, restituía o instrumento jurídico do habeas corpus.
Em oposição aos argumentos do professor Aarão, vale lembrar que a mencionada emenda entrou em vigor no primeiro dia de 1979 sem, no entanto, alterar os efeitos dos atos praticados com bases nos instrumentos ditatoriais, que haviam vigorado, em alguns casos, por uma década. Os milhares de brasileiros que, de alguma forma, foram atingidos pelo regime de exceção, ainda não podiam apresentar demandas judiciais, pois os efeitos dos atos revogados permaneciam excluídos de apreciação judicial.
De todo modo, as disputas pelas margens do passado, voltarão a aparecer nas análises do historiador. A partir do capítulo quatro, por exemplo, o trabalho dedica-se à exploração das contradições inerentes ao projeto de modernização conservadora, que ganha contornos mais visíveis a partir da retomada do nacional-estatismo pela ditadura civil-militar. Entre os anos de 1968 e 1974, outro fenômeno ressalta as contradições do projeto grandioso de Brasil: a institucionalização do aparelho repressivo por intermédio dos mecanismos criados com a adoção do ato institucional em 13 de dezembro de 1968. Os anos dourados do “milagre” econômico trariam como marca inequívoca a cor do chumbo e do sangue a partir do período no qual a chamada “linha dura” impôs-se no comando do país.
Nos últimos dois capítulos dedicados à segunda parte da obra, o professor Daniel Aarão situa o processo de distensão política, que fora encaminhado a partir de 1974, dentro do quadro mais amplo de novos planos para a institucionalização da ditadura. Nas palavras do autor, tratava-se de criar condições políticas para o restabelecimento de um estado de direito autoritário, por intermédio da institucionalização e superação do estado de exceção.
Na última seção do livro, o professor Daniel Aarão retoma o debate acerca das margens cronológicas da ditadura, por intermédio da análise crítica do processo de transição política. Os anos iniciais da década de 1980, até a aprovação da constituição “cidadã” de 1988, foram marcados, na análise do historiador, por uma mescla de perplexidade, idealização da identidade nacional e fracasso.
No projeto nacional que nascia, comandado em boa medida pelas mesmas forças civis e militares, que gozaram de prestígio e poder ao longo das décadas de 1960 e 1970, a democracia surgiria em um horizonte de altas expectativas para resgatar o povo feliz, abençoado e de espírito francamente democrático, que suportara por décadas o jugo opressor. À fina ironia, o autor acrescenta a crença no poder transformador do conhecimento. “Não há como se libertar da ditadura sem pensar nela”. Talvez, seja um caminho para definirmos novas margens para uma sociedade mais justa e livre.
Pedro Teixeirense é historiador e editor do site História da Ditadura.
* Este texto foi publicado originalmente na Revista Contemporânea. Dossiê 1964-2014: 50 anos depois, a cultura autoritária em questão.
Comentários