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Foto do escritorDavid Concerva e Arthur Lira

“Retratos Fantasmas” de uma cidade

“Retratos Fantasmas discute a conexão entre amor, memória e cinema”, “Retratos Fantasmas – A eternidade do cinema assombrada pelo tempo”, “Retratos Fantasmas' é um 'documentário sentimental' sobre o Recife”. Não há segredo. A maioria das análises cinematográficas do mais recente filme de Kleber Mendonça destaca os pilares fundamentais de sua nova obra: memória, amor, cidade, transformação, cinema e história.


Se um dia tivéssemos que perguntar ao cineasta Kleber Mendonça Filho quais são as lembranças marcantes na sua infância, na adolescência ou ao longo de sua carreira, com muita certeza teria uma boa parte de suas respostas em seu novo filme “Retratos Fantasmas” que estreia neste fim de semana nos cinemas de todo o Brasil.


Este filme sensível entrelaça habilmente a narrativa do diretor, a história da cidade do Recife e os cinemas que marcaram de forma inegável o cotidiano desta provinciana metrópole (ou metrópole provinciana?), deixando uma impressão que persiste apesar do processo de modernização que tem deslocado os fluxos sociais, econômicos e políticos da cidade em direção à Zona Sul, área em que se concentra boa parte da emergente “elite econômica” da cidade.


Parte da história dessa cidade converge para as ruas, odores e afetos que marcam as nossas travessias. Esse é o Recife. Um Recife. Cinza, feio, sujo e “cheio de amor pra dar”. Por suas ruas, existiram inúmeras salas de cinema... nossos templos. Nossas salas parecem completar essa sensação um tanto sinestésica, imagens, sons, odores, sonhos e afetos. Não há ninguém que tenha passado pelas ruas do Recife e não reconheça parte dessas sensações. Marcam.


O filme e a história


"Retratos Fantasmas" nos convida a uma jornada íntima com Kleber Mendonça Filho ao longo de 91 minutos que nos mergulham profundamente em suas experiências e na essência do Recife. Ao longo do filme, ele compartilha memórias da infância, sua ligação intrínseca com o cinema e como a cidade do Recife moldou sua trajetória. A narrativa vai além da nostalgia, recordando-nos da efemeridade do tempo e levantando questionamentos sobre como o cinema pode preservar a vitalidade dessas memórias, especialmente em face à ameaça do esquecimento iminente. O apartamento em Setúbal, a meros 250 metros da praia, desempenha um papel fundamental, servindo como testemunha de momentos familiares inesquecíveis e cenário de várias de suas criações cinematográficas.


Percorrer a Rua da Aurora, atravessar a Ponte Duarte Coelho, seguir pela Rua do Sol e repousar diante da Praça Joaquim Nabuco. Em épocas anteriores, seguir essa rota na capital pernambucana significava, inevitavelmente, encontrar um cinema pelo caminho. E quando falamos cinema não falamos os grandes ‘multiplex’ que temos hoje. Falamos dos cinemas de rua. Daqueles que têm a barraca de pipoca quentinha em frente, um sofá num amplo espaço de espera para os espectadores, daqueles que para chegarmos à sala de fato, teríamos que atravessar a cidade, em seus conflitos e contradições.


Hoje, ao trilharmos esse caminho nos deparamos com uma paisagem completamente transformada. Enquanto é amplamente reconhecido que as cidades estão sujeitas a metamorfoses, dirigir nosso olhar para o destino que elas estão percorrendo emerge como uma questão crucial. Anteriormente, ao sair de uma sala de cinema, éramos imediatamente confrontados com as calçadas e toda realidade da cidade. Entretanto, nos dias de hoje, ao deixarmos os ‘multiplex’, muitas vezes nos vemos diante de um mundo fantástico caracterizado pela higienização dos grandiosos shoppings.


Para falar sobre isso em seu novo filme, o diretor Kleber Mendonça Filho construiu um enorme álbum da cidade do Recife. Um arquivo constituído por materiais próprios desde a graduação em Jornalismo pela UFPE, passando pelos mais diversos acervos de jornais, televisões e centros de documentação existentes na cidade. Além, claro, dos arquivos das mais diversas famílias que também vivenciaram a segunda metade do século XX de efervescência cultural e econômica no centro da cidade. Para isso, fez até um chamamento nas redes sociais:

Para interligar essas narrativas, o diretor compartilha com os espectadores seu mapa afetivo do centro do Recife. Ao som vibrante de "O meu sangue ferve por você", interpretada por Sidney Magal, com os versos que proclamam “Ohhhhhh! Eu te amo! Ohhhh! Eu te amo!”, somos guiados por uma breve incursão na história dos cinemas que moldaram gerações no Recife: o icônico Cinema São Luiz, na Rua da Aurora; o lendário Art Palácio e Trianon, situados na Rua do Sol; o evocativo Cinema Moderno, na Praça Joaquim Nabuco; e o nostálgico Cinema Veneza, na Rua do Hospício.


Ao examinar a documentação que Kleber utiliza, é perceptível como a cidade de Recife não apenas serviu de cenário, mas também desempenhou um papel dinâmico na evolução da produção cinematográfica. Dentro das relações intricadas que se desenvolvem, torna-se perceptível a forma como os próprios filmes do diretor, como "O som ao redor" e "Aquarius", foram construídos em meio a essa interação complexa.


Por meio dessas narrativas, é revelado como as cidades e os cinemas têm sido protagonistas durante diversos acontecimentos marcantes em nossa história recente brasileira. No filme, Recife aparece como palco dessas transformações. O “UFA Palácio”, por exemplo, se envolveu na engrenagem de propaganda nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Enquanto isso, o Edifício Alfredo Fernandes se transformou em um tipo de “segundo consulado americano”, abrigando distribuidoras de filmes em plena Guerra Fria. Não se pode ignorar o episódio em que militares confiscaram as fitas do Art Palácio, assim como o impacto simbólico do letreiro do São Luiz exibindo a mensagem “CUIDEM-SE” em plena pandemia de COVID-19. Cada uma dessas histórias reflete a interseção única entre o tecido urbano e o cenário cinematográfico, e como ambos têm reagido aos desafios ao longo do tempo.


Um apartamento que vira cenário, uma igreja que vira cinema, um cinema que vira igreja, um centro que vira margem, um filme que vira realidade. Talvez, realmente, “os filmes de ficção sejam os melhores documentários” e hoje, ao andarmos pelas cidades, tenhamos que conviver com alguns fantasmas.


O Recife por suas ruas, cinemas e imagens...


O Recife do século XX é o Recife das salas de cinema. A primeira da cidade foi o Cine Pathé, localizada na antiga Rua Barão da Vitória, hoje chamada de Rua Nova, inaugurada no dia 27 de julho de 1909. Outros espaços como o Cine Glória, Éclair e Ideal não tardaram a aparecer. Próximo ao Phaté surgiu, quatro meses depois, o Royal, situado na mesma rua. A briga foi grande! Os dois espaços passaram a disputar o público recifense (que sempre foi bem exigente). Se o Royal exibisse sete filmes, o Pathé colocava oito na programação. No entanto, o Pathé encerrou suas operações antes de 1920. O Royal, por sua vez, teve uma existência que ultrapassou quatro décadas.


Com o fechamento do Pathé, o Royal assumiu um espaço de destaque. Durante a primeira metade da década de 1920, este cinema desempenhou um papel importante para a cinematografia local, colocando em sua programação filmes produzidos pelo denominado “Ciclo do Recife”. O “Ciclo do Recife” (1923-1931) foi um dos maiores ciclos do cinema silencioso do Brasil, produzindo dezenas de filmes, alguns deles circulando nacionalmente. Uma história de destaque do Cinema em Pernambuco começou aqui. Uma história que, como um bom produto do Recife, foi cheia de afetos e “brodagens”.


Em 1910, foi fundado o cinema Helvética, propriedade da Girot & Cia, na Rua da Imperatriz, no bairro da Boa Vista. A cidade se expandia e os cinemas também. Um ano depois, foi inaugurado na Rua Barão de São Borja, também no bairro da Boa Vista, o Polythema, que em 1932 viria a pertencer ao grupo do empresário cearense Luiz Severiano Ribeiro (1886-1974). Luiz foi o fundador do Grupo Severiano Ribeiro, ao qual a história dos “multiplex” também está associada. A cidade se expandia, e os cinemas chegaram à Zona Sul. Mas não nas ruas... nos shoppings, e com dezenas de salas.


No ano de 1913, foi inaugurado o Teatro Moderno, localizado na Praça Joaquim Nabuco no bairro de Santo Antônio, e que em 1915 passou a funcionar também como cinema. Em 1915, foi a vez do Cine-teatro do Parque, na Boa Vista. A sala, um dos mais importantes dispositivos culturais do centro do Recife, recebeu a estreia de “Retratos Fantasmas” no dia 14 de agosto. Duas sessões, em plena segunda-feira, que lotaram o espaço.


O centenário Teatro do Parque, localizado na Rua do Hospício no Centro do Recife, passou a funcionar como “Cine-Teatro” do Parque um mês depois de sua inauguração. Pertencente ao Comendador Bento Luís de Aguiar, o cine-teatro foi arrendado por Luiz Severiano Ribeiro em 1929, que fez do espaço, pouco tempo depois, a primeira sala recifense a exibir filmes sonoros.


A estreia de “Retratos Fantasmas”, em um dos templos do cinema pernambucano (diga-se passagem, recentemente reinaugurado – em 2020, após 10 anos fechados), nos fez lembrar a “estreia” da própria sala. Tamanha a expectativa, a inauguração do Teatro do Parque, como era de se esperar, foi um sucesso de público. Em março de 1930, o Teatro do Parque foi o cenário de uma das maiores transformações do cinema em Pernambuco: a chegada da sonorização. O Recife recebeu seu o primeiro filme sonoro, “A Divina Dama (1929) – dirigido por Frank Lloyd e estrelado por Corinne Griffith – com sala lotada, claro.


A partir do Parque, muitas salas de exibição tiveram que se readaptar à tecnologia. Sobretudo seu principal concorrente, o Moderno. Para acompanhar a empolgação da novidade e não perder seus clientes, não tardou para que outras salas da cidade passaram a oferecer a sonorização. Em um contexto em que os centros urbanos buscavam a “modernização”, traçados pela construção de aspectos visuais e culturais, a transformação das salas de cinema do Recife tornava-se um fator característico do projeto modernizante.


Vale destacar, ainda em tempo, que o Art Palácio, um dos personagens do filme de Kleber Mendonça, recebeu em novembro de 1942 o primeiro filme sonoro do Norte e Nordeste do país: “O Coelho Sai”. O filme foi realizado durante o Estado Novo em Pernambuco, pela produtora pernambucana Meridional Filmes, que mantinha intensas relações com o interventor federal Agamenon Magalhães. Um dos tantos fantasmas da história cultural desta cidade...


Kleber Mendonça, ontem e hoje, nos faz reviver muitos fantasmas da nossa cidade: os prédios, as ruas, os cheiros, as cores, os amores, os dilemas... Conforme o próprio diretor escreveu em seu Twitter, fazendo referência a fala de uma amiga: “O centro do Recife tem cheiro de maré, fruta e mijo”. Não deixem de assistir essa declaração de amor pela cidade e pelo cinema. Cinema é massa!



 

Como citar este artigo: CONCERVA, David; LIRA, Arthur. “Retratos Fantasmas” de uma cidade. História da Ditadura, 26 ago. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/retratos-fantasmas-de-uma-cidade. Acesso em: [inserir data].


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