Ser historiador no século XXI
Quando fui convidado a fazer parte da rede de colunistas que dá vida ao História da Ditadura, aceitei de imediato e logo me animei com a possibilidade de trabalhar ao lado de tanta gente talentosa e de comunicar um pouco do que eu penso sobre o nosso ofício a um público tão diverso. Entre tantas iniciativas que a comunidade de historiadores tem lançado na internet e nas redes sociais, o portal não só se destaca pela finesse de suas produções e de sua equipe, mas também pelo engajamento político que exerce no tempo presente brasileiro.
Hoje, diante das conturbações que nos atormentam, assumir a identidade de historiador(a) não é mais firmar compromissos com o Estado nacional, princípios de verdade científica ou com convicções que há muito sucumbiram. Isso já vem sendo bem observado por diversos autores. Nesse sentido, com o título “Ser historiador no século XXI”, que dá nome à coluna e ao seu primeiro artigo, não quero de maneira alguma oferecer convicções próprias como fórmulas irrevogáveis de atuação profissional. É claro que o mundo é bem maior do que as minhas crenças. O meu desejo é discutir as múltiplas formas que a nossa área e o nosso métier têm assumido em um contexto marcado por tecnologias disruptivas, pelo advento das redes sociais ou pela urgência em se expor a públicos mais amplos – signos de um tempo histórico “atualista”, à maneira de Valdei Lopes de Araujo e Mateus Henrique de Faria Pereira (2019).
Tempos atrás, em algum momento antes das nossas qualificações, eu conversava com um colega e grande amigo a respeito do texto que ele apresentaria à banca. A sua pesquisa é dedicada à obra de Svetlana Aleksiévitch, uma escritora bielorrussa que denunciou as violências do regime soviético por meio da literatura. Ele estava preocupado com a definição teórico-metodológica da pesquisa, um drama que todos nós conhecemos muito bem, visto que a história não é exatamente conhecida pela liberdade de transição entre diferentes áreas do conhecimento – não, ao menos, sem justificá-la de acordo com os parâmetros estabelecidos pela historiografia. Recordo-me de ter dito a ele que essa definição era uma questão menor, até mesmo dispensável.
Às vezes ficamos tão fechados na precisão dos termos e condições disciplinares que nos esquecemos de efetivamente produzir um trabalho inteligível. Eu sempre percebi isso escrevendo os meus próprios trabalhos, sempre estava preso à necessidade de enquadrá-los em determinada corrente teórica ou arcabouço metodológico. Sei que isso é importante do ponto de vista acadêmico, mas nós deveríamos dar cada vez menos importância para as nossas próprias fronteiras. Isto é, pouco importava para o meu amigo se os livros de Svetlana eram parte da literatura ou da história. Sei que isso pode soar estranho no momento em que a nossa profissão foi regulamentada, mas quero dizer que limitar a identidade do historiador não me parece tão proveitoso diante da expansão de um mercado que mais valoriza as competências práticas de alguém, o domínio de uma ampla gama de aplicações, do que propriamente um título. E esse é o maior problema da nossa formação, na minha visão.
O nosso leque de competências é razoavelmente curto. Baseia-se, no limite, em saber ler, escrever e ensinar bem. E olhe lá, visto que não são habilidades devidamente aprimoradas ao longo dessa formação, apenas espera-se que nós saibamos dominá-las até o final do curso. São habilidades fundamentais, é claro, mas não estou certo de que podem ser as únicas credenciais de um profissional nos dias de hoje, a não ser que nós queiramos continuar fazendo o que sempre fizemos – o que não parece ser o caso, considerando o que tem sido defendido pela história pública e pela história digital, ansiosas por algo de diferente.
A nossa formação precisa sofrer uma mudança radical do ponto de vista das funções que aprendemos e adquirimos ao longo dela. Hoje, não há como executar qualquer uma dessas tarefas (produção teórica e ensino) sem levar em consideração o fato de que a comunicação é uma habilidade fundamental. E não me refiro somente à capacidade de se manifestar diante de muitas pessoas ou de falar sem vergonha a uma câmera, uma vez que essas habilidades são desafios de longa data – e certamente muitos de nós assumiram a obrigação de dominá-las durante a pandemia, quando as lives proliferaram-se nas redes. Refiro-me, em especial, aos diferentes elementos que formam um arcabouço comunicativo eficiente no século XXI, com destaque ao senso estético aguçado e ao domínio da linguagem das mídias sociais.
Não acho que conhecer a fundo todas as técnicas nascidas com as novas tecnologias ou a indústria 4.0 seja uma obrigação. Aliás, o próprio contato com empresas ou indivíduos que as dominem já é um enorme passo no desenvolvimento de bons projetos em história atualmente. Parcerias com grupos de fora das humanidades poderiam ser mais frequentes em nossas rotinas de trabalho e pesquisa.
Do ponto de vista das universidades, eu gostaria muito de ver os currículos do curso de história abertos a disciplinas oferecidas por outros departamentos ou programas de pós-graduação, especialmente na área de comunicação, uma área que ofereceu a mim algumas das melhores experiências que tive no curso de mestrado. O Bacharelado em Publicidade e Propaganda da UFRGS, por exemplo, oferece obrigatoriamente cadeiras de comunicação e audiovisual, comunicação e design, produção gráfica ou estratégias de marketing – disciplinas que, de um modo ou outro, poderiam enriquecer bastante a nossa formação.
É claro que qualquer um de nós pode trilhar esses caminhos de maneira autônoma, aventurando-se em videoaulas e cursos de especialização. Mas, de acordo com Pedro Telles da Silveira (2020, p. 4), “numa economia para a qual a informação é cada vez mais a principal mercadoria, [os historiadores] se tornarão parte do mercado de produção de conteúdo, tarefa para a qual nossos cursos de graduação e pós-graduação pouco os têm preparado”. Além de ler, escrever e ensinar bem, seria conveniente comunicar bem, um diferencial no mercado de trabalho contemporâneo.
Desde que entrei no curso de história, só me foram apresentadas duas possibilidades: ou eu trabalharia como professor (na educação básica ou no ensino superior), ou trabalharia como pesquisador em alguma instituição. Raramente era cogitada, por exemplo, uma oportunidade em canais de televisão – caso de Leandro Karnal, doutor em história e agora apresentador de um programa na CNN Brasil. A TV, aliás, só aparecia para ser criticada na figura dos jornalistas que produzem história.
Gosto muito de um artigo de Marcelo Róbson Téo (2018, p. 377), publicado na revista Tempo & Argumento, no qual ele defende “formas possíveis de convivência e interação entre o historiador, a sociedade e o mercado”. Num futuro próximo, por exemplo, acredito que muitos historiadores vão produzir trabalhos baseados em análise de dados, mas isso não significa que esse tipo de abordagem será prontamente incorporado pelos currículos de história. Sem uma ampliação curricular, essas pesquisas serão quase sempre sustentadas pelo esforço pessoal de cada pesquisador interessado em realizá-las.
Referências
ARAUJO, Valdei Lopes de; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI. Vitória: Editora Milfontes/Mariana: Editora da SBTHH, 2019.
SILVEIRA, Pedro Telles da. O historiador com CNPJ: depressão, mercado de trabalho e história pública. Tempo & Argumento, Florianópolis, v. 12, n. 30, p. 2-28, maio/ago. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/36SnNKQ>. Acesso em: 19 nov. 2020.
TÉO, Marcelo Róbson. Desequilíbrio de histórias parte I: um problema do campo das humanidades (?). Tempo & Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, p. 358 ‐ 380, jan./mar. 2018. Disponível em: <https://bit.ly/3fJur9d>. Acesso em: 18 jul. 2020.
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