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Raquel Elisa Cartoce

Sobre detergentes, revistas e a ditadura

Atualizado: 1 de mai. de 2021

 

Ao abrir qualquer grande revista de variedades em fins da década de 1960, um cidadão comum poderia encontrar muitas informações sobre o vertiginoso crescimento da produção industrial, entrevistas com grandes personalidades da época, fotos de candidatas a Miss Universo ou ainda debates entre especialistas sobre os efeitos da televisão no lar brasileiro. Mas não só. O mesmo leitor descobriria que “Le Mazelle está preparando um golpe de estado na moda brasileira com sua linha 68”, que a batedeira Walita era “A nova líder das massas” ou seria convocado para ser uma “guerrilheira ODD” na luta “contra a subversão das panelas”.


Esses e outros slogans, assim como fotos, ilustrações e textos, recheavam as páginas publicitárias de revistas que tiveram ampla circulação no Brasil entre 1968 e 1973 – período marcado por uma grande ambiguidade: por um lado, é chamado de “anos de ouro” do milagre econômico, com o PIB nacional crescendo como nunca, assim como as possibilidades de consumo abertas pela abundante oferta de crédito e de mercadorias as mais variadas. Por outro, são também os “anos de chumbo”, inaugurados com a edição do AI-5 e marcados pelo endurecimento do regime ditatorial, com a generalização da prática de prisões políticas, torturas e exílios.


A exploração das páginas publicitárias de grandes revistas daqueles anos (como Manchete, Visão e a novíssima Veja) permite ao observador atual muito mais que uma nostálgica volta ao tempo com produtos e marcas que passaram a fazer parte do imaginário social brasileiro. Longe de serem um mundo de fantasia apartado da realidade, esses anúncios também expressavam ideias sobre o momento político e econômico do país.

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Anúncio Le Mazelle. [Manchete. Nº 827. 24/02/1968


Isto porque cada anúncio publicitário é criado a partir de três principais elementos: os objetivos do anunciante (que pode ser uma indústria, um prestador de serviços ou até mesmo o governo), as expectativas e imaginários de seu público alvo (em geral a classe média, além de outros nichos específicos) e, finalmente, a técnica e os interesses do grupo publicitário criador da mensagem, atuante como uma espécie de mediador. Assim, mais do que compreender a dinâmica comercial do período, os anúncios publicitários permitem interessantes conclusões sobre o que esses três importantes setores da sociedade civil brasileira – o empresariado, a classe média e os profissionais de publicidade – pensavam sobre o universo político, econômico e cultural em que estavam imersos.


O primeiro ponto a ser observado é que, quando se fala em propaganda em contextos ditatoriais, logo vem à mente a grandiosa estrutura de propaganda de regimes como o nazismo, o stalinismo e mesmo, aqui no Brasil, o varguismo. Muitas vezes se espera encontrar em veículos de comunicação da grande imprensa uma enxurrada de anúncios com slogans como “Brasil: Ame-o ou deixe-o” ou peças do governo federal com o rosto do ditador Médici sobre uma multidão, bem ao gosto das propagandas feitas pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) de Vargas.


Entretanto, ocorre justamente o contrário. O rádio – veículo fundamental na propaganda varguista – foi pouco explorado pelo governo militar, que tinha na televisão e nas revistas seus principais meios de comunicação com a população. Ainda muito jovem, a televisão tinha uma série de limitações técnicas e público restrito, de modo que as revistas se consolidavam como um veículo que atingia um público amplo, tinha maior durabilidade e permitia grande liberdade técnica e gráfica. Ainda assim, no universo de anúncios impressos, há uma quantidade muito pequena de peças do governo (uma média de apenas 5% do total nas três revistas citadas), sendo a maioria de empresas estatais divulgando seus produtos e serviços ou de campanhas de pretensa utilidade pública.

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Anúncio Walita. [Manchete. Nº 917. 15/11/1969.


O historiador Carlos Fico fornece algumas explicações para esse fenômeno em sua tese Reinventando o otimismo. Para o autor, os militares receavam ser relacionados aos regimes nazifascistas da primeira metade do século XX, especialmente do governo Vargas – de quem eram francos opositores. Além disso, havia a consciência de que anúncios “chapa-branca” não funcionavam mais, e que seriam necessárias técnicas (e técnicos) que tornassem essa propaganda mais sutil, através de campanhas aparentemente inofensivas e que fossem de utilidade pública.


A explicação de Fico, contudo, não responde a outra importante questão: sabendo-se que a propaganda é fundamental para a manutenção de regimes autoritários, como o governo ditatorial conseguia sustentar suas políticas com apoio da população durante aqueles anos?  O caso é que a relativa ausência de anúncios do governo não implicou, necessariamente, a inexistência de elementos de ufanismo, patriotismo e enaltecimento ao regime militar. A Transamazônica se tornou, mais do que cenário, personagem de anúncios do Volkswagen Fusca e da construtora Camargo Corrêa (aliás, uma das maiores beneficiadas com a construção da rodovia). A ponte Rio-Niterói era estampada em anúncios de empresas de aço e, apesar do sisudo Médici não ser o personagem ideal para figurar em páginas publicitárias, o ministro da fazenda Delfim Netto (o civil apontado como grande responsável pelo “milagre econômico”) foi garoto-propaganda de várias peças publicitárias.


É claro que a iniciativa privada não bancava tal discurso em anúncios caros por puro sentimento de dever patriótico. Ao se colocarem junto a valores da pátria ou mesmo das políticas governamentais, as empresas privadas destacavam seu papel no crescimento econômico e, segundo seu discurso, no desenvolvimento nacional. É sob esta lógica que a empresa aérea Sadia se dizia a melhor “para ajudá-lo a montar este quebra-cabeça brasileirinho”, ou seja, ser elemento essencial no projeto de integração nacional dos militares, a estadunidense Black & Decker afirmava (que ironia!) possuir “armas estrangeiras para a independência do Brasil” e o grupo financeiro Minas Investimentos destacava que “as modernas operações financeiras estão democratizando o acesso aos bens de consumo” – a única coisa que parecia estar se democratizando naquele momento. Assim, interesses do governo militar e dos empresários – tanto nacionais quanto estrangeiros – convergiam e se expressavam à população como uma aliança necessária ao desenvolvimento e ao cumprimento do inevitável destino do “Brasil potência”.

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Anúncio ODD. [Manchete. Nº 882. 15/03/1969.]


Mediando tais interesses estavam os donos das grandes agências publicitárias, com alto trânsito não apenas entre o empresariado, mas também no governo militar: Geraldo Alonso (dono da agência Norton) e Petrônio Corrêa (um dos sócios da MPM), por exemplo, eram notórios entusiastas do regime ditatorial, sendo que o primeiro havia sido um dos membros do IPES, entidade de grande importância na efetivação do golpe em 1964. Esses e outros grandes empresários do setor publicitário nacional costuraram, no ano de 1969, a criação do Consórcio Brasileiro de Agências de Propaganda – que garantia às agências nacionais gordos contratos com o governo, elevando extraordinariamente seus lucros, e que dava um caráter mais técnico e sutil à propaganda do governo, retirando-lhe o aspecto de “chapa-branca”.


Porém, não só de empresários é feita uma agência de publicidade. Nela também há redatores, desenhistas, escritores, cientistas sociais… enfim, os “criativos”. Muitos deles não se identificavam de forma alguma com as ideias dos patrões. Alguns, como o redator Neil Ferreira (contratado em 1969 pela Norton de Alonso juntamente a um grupo de publicitários autodenominado “Os Subversivos”), identificavam-se abertamente como comunistas, outros nem tanto. Mas a grande maioria concordava em um ponto: o papel dos profissionais da criação era subvalorizado nas agências.


Desta forma, as palavras de ordem da “revolução sexual” e da “revolução comunista” que marcaram o Brasil e o mundo a partir de 1968, sobretudo, ecoavam dentro das agências com um novo significado: a “revolução criativa”. Seu marco foi a fundação da DPZ – primeira agência dirigida por criativos no Brasil.

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Anúncio Volkswagen. [Veja. Nº 150. 21/07/1971.]


A intenção era atribuir maior poder à palavra, ao símbolo e, principalmente, maior liberdade de interpretação. O que estava em jogo não eram apenas os interesses do anunciante, mas também o diálogo com o público alvo. Um público bastante heterogêneo, com muitas variantes de poder de consumo, idade, gênero, aspirações, tendências políticas e visões de mundo.


Este diálogo pressupõe não uma pura imposição dos valores e discursos do anunciante, que poderia muitas vezes afastar o potencial consumidor, mas sim a criação de laços de identificação entre o produto anunciado e elementos presentes no universo das pessoas. No que toca o campo da política, tais elementos vinham dos noticiários e jornais, mas também das conversas de bar, dos vizinhos que sumiram misteriosamente, do colega de trabalho com ideias “subversivas”, do filho cabeludo e rebelde… Elementos que não poderiam ser simplesmente negados ou ignorados pelos publicitários em sua busca por atingir o potencial consumidor, pois constituíam parte do seu imaginário e de seu quotidiano, contando muitas vezes com sua franca adesão. O negócio, então, era saber harmonizar ideais contrários ao establishment de modo a agradar a gregos e troianos. Tudo com uma boa dose de humor.

Foi assim que a Chrysler, em um anúncio do carro de luxo Dodge, sugeriu que o leitor “critique o american way of life – dentro deste carro”, o que seria possível pelo fato de que o veículo passara a ser montado no Brasil. Também a já citada Le Mazelle “deu um golpe de Estado na moda com sua coleção 68”. Um golpe jovem, sorridente, feminino, inocente, positivo (já que trazia novidades para a moda). Mas ainda assim um golpe de Estado, num ambiente caótico e desestruturado (da obra do edifício, no anúncio; e das manifestações e conflitos políticos, na realidade), que permanecia na memória nacional quatro anos depois de sua efetivação.

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Anúncio Sadia. [Visão. V.35, nº5. 29/08/1969.]


Até a tortura foi tratada em algumas peças, como aquela que dizia: “na câmara de torturas o TV Philips 550 resistiu a tudo”. Assim, ao mesmo tempo em que trata a tortura sob uma chave positiva, associando-a a uma prova de resistência, não deixa de pôr em pauta um tema muito grave, sobre o qual os militares tentavam impor um grande silêncio: o anúncio fora veiculado na revista Veja justamente na edição em que o periódico fazia graves denúncias à tortura praticada pelos militares (nº 63, 19/11/1969), motivo pelo qual sofreu forte censura e o desmantelamento de sua equipe editorial original.


As peças publicitárias aqui brevemente analisadas são uma pequena amostra de como o vasto universo de anúncios do período áureo da publicidade no Brasil pode, enfim, ser revelador de muitos aspectos fundamentais para a compreensão das relações entre a ditadura militar e a sociedade civil brasileira.


O primeiro é a relação intrínseca entre os setores público e privado (nacional e estrangeiro) como sustentáculo do regime, num contexto de afirmação do capitalismo em plena Guerra Fria. O segundo é a paulatina substituição da cidadania pelo poder de consumo como elemento de participação na vida social e política – problema que pauta cada vez mais a nossa agenda política. Finalmente, ao demonstrar a polifonia de discursos presentes no imaginário da sociedade – de exaltações ufanistas à ditadura até a necessidade de trazer à baila assuntos espinhosos ao regime, como tortura, guerrilhas e o espectro do golpe de Estado –, os anúncios publicitários se colocam como uma fonte útil para ajudar a despolarizar as principais interpretações sobre a relação da sociedade com a ditadura, que ora é vista como “resistente” (segundo a memória liberal hegemônica), ora é vista como “colaboradora” por sua apatia (segundo interpretações mais recentes).

Raquel Elisa Cartoce é historiadora.

 

Para saber mais:

CARTOCE, Raquel Elisa. O milagre anunciado: publicidade e a ditadura militar brasileira (1968-1973). Dissertação de mestrado em História. USP, 2017.

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