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Foto do escritorWallace Andrioli

Sorte cega: as muitas vidas de um homem sob o comunismo polonês

Atualizado: 29 de abr. de 2021

 

Sorte cega (1981) é um dos filmes mais abertamente políticos do cineasta polonês Krzysztof Kieślowski (1941-1996). Parte do “cinema da preocupação moral”, também chamado de “cinema da desconfiança”,[1] que emergiu em meados da década de 1970 como uma força crítica ao regime comunista então vigente, Sorte cega ainda se beneficiou da flexibilização censória decorrente do aparecimento do movimento sindical Solidariedade, em 1980-1981. O enredo acompanha o jovem Witek (Boguslaw Linda), estudante de medicina que, em crise após a morte do pai, decide abandonar a faculdade e migrar para Varsóvia. Apresentada essa situação inicial, o filme enfim se revela, dividindo a narrativa em três versões diferentes do futuro de Witek, dependendo de seu sucesso ou fracasso ao tentar pegar um trem para a capital.

O cinema de Kieślowski é muito associado à angústia existencial, a reflexões sobre a busca por sentido para a aparente aleatoriedade da vida. Sorte cega se encaixa nessa característica, já que especula sobre a frágil unidade da trajetória de um homem, que muda radicalmente em decorrência do resultado de uma só ação. Mas é interessante como o filme, ao apresentar as três versões do futuro do protagonista, aborda também os diferentes comportamentos sociais possíveis em regimes autoritários.

O Witek do primeiro segmento é um carreirista no Partido Operário Unificado Polonês (PZPR), o partido comunista que governou a Polônia de 1948 a 1989. Ele consegue pegar o trem até Varsóvia, onde se aproxima de Adam (Zbiginiew Zapasiewicz), uma importante liderança do partido, e se torna, ele próprio, um quadro político promissor. Reencontra, então, uma paixão de adolescência, Czuszka (Boguslawa Pawelec), que faz parte de um grupo que imprime clandestinamente literatura censurada. Witek acaba usado por Adam para desmantelar esse grupo. Consumido pela culpa e desprezado por Czuszka, o protagonista arruína sua carreira ao agredir Adam. Tenta fugir, em vão, para Paris.

No segundo segmento, Witek perde o trem. Irritado, agride um agente da estação, entra em confronto com policiais e é preso. No cumprimento de serviços comunitários, estabelece contato com um grupo de resistência ao regime. Torna-se católico[2] e engajado no combate clandestino ao comunismo. Passa então a sofrer sanções e é impedido de deixar o país. Essa segunda versão da história de Witek termina com o personagem ouvindo, pelo rádio, notícias sobre a eclosão das greves do Solidariedade, na cidade portuária de Gdansk.

Por fim, no terceiro segmento, o protagonista novamente não consegue pegar o trem para a capital. Mas, dessa vez, reencontra, ainda na estação, Olga (Monika Gozdzik), sua namorada na faculdade. Eles se reaproximam, casam e têm um filho. Witek retorna aos estudos, se forma médico e começa a trabalhar como professor. Recusa a filiação ao partido, mas tampouco assina um manifesto de estudantes a favor de alunos perseguidos politicamente. Ao final, decide abandonar tudo e migrar para a França, mas seu avião explode em pleno voo.

Adesão, resistência e indiferença. Sorte cega mapeia esses três comportamentos, dando a eles nuances, evitando qualquer construção caricatural. Ao mesmo tempo, aborda o que, para Kieślowski, parece ser permanente em contextos autoritários: o sufocamento pela estrutura do regime e a inevitável resistência. Em todos os segmentos, o destino de Witek cruza com o de grupos clandestinos. Os três contêm, em seus respectivos momentos finais, referências ao Solidariedade. Mas a impossibilidade de fuga da Polônia também se repete. Nesse movimento, o filme não chega a corroborar a ideia de totalitarismo, já que mostra, ao longo da narrativa, uma sociedade dinâmica, cheia de contrastes e na qual há brechas para discordar e mesmo confrontar. Mas, sem dúvidas, apresenta o país sob o comunismo como uma prisão praticamente intransponível.

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Vale notar algumas escolhas estilísticas de Kieślowski que marcam seu olhar para a história de Witek. A sequência da corrida atrás do trem aparece três vezes no filme. Essa lógica da repetição, pontuada pela trilha musical de Wojciech Kilar, é matizada pelas pequenas variações de cada versão, que produzem mudanças substanciais na vida do protagonista. É importante aqui o uso do plano-detalhe da mão de Witek tentando alcançar o trem: ele explicita o resultado de sua ação (o sucesso ou o fracasso da tentativa) e também comenta o tamanho reduzido desse gesto tão importante. Planos-detalhe são usados para que a câmera destaque objetos ou partes do corpo não imediatamente observáveis em composições visuais mais abertas. Um (plano-)detalhe muda toda a vida de Witek.

sorte cega

Também tem peso nessas diferentes versões da mesma sequência a primeira pessoa que o protagonista encontra logo após a tentativa de alcançar o trem. Quando bem-sucedido, Witek se depara, já dentro do vagão, com Werner (Tadeusz Lomnicki), membro do partido que irá lhe apresentar a Adam. No segundo segmento, o encontro brusco é com o agente da estação, que o impede que continue correndo. No terceiro, com Olga. Um representante do status quo, um da opressão estatal e uma da preponderância da vida privada, que levará à indiferença política. Os três personagens são filmados por Kieślowski em planos aproximados, que dão a eles a devida importância na trajetória do protagonista – o agente da estação não é um indivíduo desenvolvido pelo enredo, mas carrega o sentido simbólico da lei transgredida por Witek; dos três, ele é o único que, nesse momento do encontro, se agarra ao jovem, remetendo a um Estado que sufoca e impede o livre deslocamento.  

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Apesar de produzido nesse momento de flexibilização censória, Sorte cega teve sua exibição nos cinemas interditada, já que, em dezembro de 1981, ocorreu a decretação da Lei Marcial, que colocou o Solidariedade na clandestinidade, perseguiu seus principais líderes e produziu novo recrudescimento da censura e retaliações a cineastas engajados no “cinema da preocupação moral”. Andrzej Wajda, por exemplo, considerado então o maior diretor polonês e que, nesse contexto, fez filmes críticos como O homem de mármore (1977), Sem anestesia (1978) e O homem de ferro (1981), foi destituído do comando da cooperativa de produção cinematográfica X.[3] Outros nomes importantes desse movimento cinematográfico tiveram os rumos de suas carreiras mudados: Agnieszka Holland, diretora de Atores provincianos (1979), e Ryszard Bugajski, de Interrogatório (1982),[4] deixaram a Polônia. Wojciech Maczewski, de Calafrios (1981), restou impedido de filmar até o final dos anos 1980.

O filme de Kieślowski só foi lançado comercialmente em 1987, ainda assim com cortes. Uma das cenas arrancadas de Sorte cega pelos censores, na qual Witek entra em confronto físico com policiais na estação de trem, no início do segundo segmento, nunca foi recuperada. Na cópia restaurada lançada internacionalmente, esse momento do enredo é preenchido por uma tela escurecida, em que aparece o seguinte aviso: “Único fragmento censurado do filme que não pôde ser recuperado”. Ausência imagética que testemunha um tempo específico da história do cinema polonês.   

 

Notas:

[1] Marek Haltof (2002, p. 148), historiador do cinema polonês, define o “cinema da preocupação moral” como um “conjunto de filmes contemporâneos realistas [que] trata do conflito entre o Estado e o indivíduo e examina a grande lacuna entre os postulados ‘progressistas’ e sua implementação. Por causa da censura estatal, o sistema não é atacado diretamente; os filmes miram nas suas instituições e funcionários e foca na corrupção e no mal-estar social. Os mecanismos de manipulação e doutrinação são examinados num nível metafórico. […] Esses filmes também retratam a emergência de arrogantes elites comunistas, a hipocrisia, o conformismo e outros efeitos políticos do sistema comunista.”

 

Referências:

HALTOF, Marek. Polish National Cinema. New York: Berghahn Books, 2002.

MISIAK, Anna. The polish film industry under communist control. Iluminace, volume 24, n. 4, 2012.

ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (Org.). A construção social dos regimes autoritários: Europa, volume I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

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