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“Só dói quando eu desenho”: uma história política e cultural do humor gráfico publicado na imprensa

Atualizado: 15 de out. de 2020

 

Revista Pif-Paf, n. 2, junho 1964, p. 1 e p. 24. Direitos de utilização e reprodução da imagem sem fins lucrativos concedidos à autora


O “Jogo da Democracia”, desenhado por Ziraldo no segundo número da revista Pif-Paf em junho de 1964, é um dos exemplos da subversão dos códigos, das normas, das referências culturais e políticas permitida pelo humor gráfico publicado nas páginas de jornais ou revistas independentes durante o regime militar, a partir do golpe militar de 1964. Alguns dos objetivos da análise das suas diversas formas, tais como a caricatura, a história em quadrinhos, a charge, a gravura ou o corte-colagem de fotografia, residem na identificação da potencialidade do humor gráfico como arma de combate ao autoritarismo e na definição dos mecanismos específicos da resistência política através do riso.

Pretendo propor uma história dos interstícios e das brechas, do contorno da norma e do jogo com o proibido, da fronteira entre o militantismo e a acomodação, da emergência de temáticas sociais e culturais novas, redefinindo o engajamento político no começo dos anos 1970, e das numerosas contradições da esquerda brasileira sob o regime militar. Ao mesmo tempo, busco questionar o papel de “resistente” assumido por vários desenhistas a posteriori e analisar as complexas condições de existência de espaços de liberdade de expressão durante o regime militar, tais como o Salão de Humor de Piracicaba, inaugurado em 1974 no interior de São Paulo.

A partir do golpe militar de 1964, as medidas de proibição impostas aos meios de comunicação se multiplicaram e criaram um conjunto complexo de textos normativos. Rodrigo Patto Sá Motta afirmou, em um artigo dedicado às ambiguidades da imprensa tradicional, que “os grandes jornais, na maioria, se acomodaram à situação política, comportamento, aliás, comum na nossa cultura política”. A grande imprensa forneceu um inegável apoio ao golpe militar e às medidas antisubversivas que o seguiram, mas cabe lembrar a inquietação crescente dentro de certas redações frente à ascensão do autoritarismo.

Paralelamente, as publicações independentes representavam, assim como os movimentos democráticos de resistência ao regime militar, um conjunto heterogêneo cujas características ideológicas e formais merecem definições sutis. Esses jornais e revistas questionavam as normas estéticas propondo projetos gráficos inovadores e se colocavam na continuidade ideológica dos grupos de oposição democrática. Entre a segunda metade dos anos 1970 e o começo dos anos 1980, novos títulos nasceram e vieram enriquecer o quadro da imprensa independente e combativa: publicações ecologistas, imprensa ligada ao ressurgimento do Movimento Negro, títulos que se colocavam em defesa dos direitos dos indígenas ou dos homossexuais, jornais feministas, etc.

Imagem: Pixabay


A volta dos primeiros exilados ao país coincidiu com o tratamento de temáticas até então pouco evocadas pela esquerda tradicional: as lutas das minorias étnicas, a importância da psicanálise ou da psicologia, as desigualdades de gênero, a perpetuação dos estereótipos construídos e disseminados pela sociedade patriarcal, entre outras. A imprensa independente se diferenciava da grande imprensa, mas também dos títulos clandestinos ou partidários. Ao analisarmos as condições concretas de existência, o público leitor e os projetos políticos, por meio do conteúdo gráfico humorístico e dos atores, nos chamam muita atenção as origens sociais, os percursos individuais, as formações universitárias e profissionais e as fontes do engajamento militante dos cartunistas e desenhistas de humor político que trabalharam na imprensa independente.

É importante fazer um esclarecimento sobre o que é considerado como “imprensa independente”. A partir dos anos 1960, o uso dos termos imprensa “alternativa” se tornou predominante no Brasil para se referir a esses títulos, mas eram várias as qualificações para um tipo de publicação que fazia parte da oposição política e propunha inovações estéticas, gráficas e organizacionais dentro das redações: imprensa nanica, imprensa underground, imprensa mimeografada… Essa diversidade de termos corresponde a um conjunto multiforme e diverso de publicações cujas longevidade, periodicidade e organização interna variavam muito.

Entretanto, é possível desenhar alguns traços principais e identificar alguns níveis de análise. Primeiramente, esses jornais e revistas representavam condições de trabalho diferentes e alternativas para jornalistas e cartunistas que saíram da imprensa majoritária por razões ideológicas ou políticas. Subsequentemente, eles também possibilitavam modos de produção e de organização inovadores no seio das redações: cooperativas de jornalistas, ausência de propaganda comercial em alguns títulos, autofinanciamento, etc. Essas redações formulavam projetos políticos críticos em relação ao regime militar e eram compostas por membros de distintas origens sociais e intelectuais, cujo pensamento geralmente era de oposição ao autoritarismo.

No plano formal, os títulos propunham inovações estéticas tais como uso de cores, tipografias ou paginações que ultrapassavam as normas impostas no âmbito da imprensa escrita. Finalmente, os jornais do corpus que analisamos atribuíam um lugar de destaque ao humor gráfico em suas páginas, principalmente os da imprensa satírica e humorística, um dos alvos privilegiados da censura. As várias caricaturas, os cartuns e as histórias em quadrinhos eram disseminados no conjunto das páginas da publicação ou colocadas em seções específicas. Em expressiva parte dos trabalhos que se dedicaram ao estudo desse conjunto de publicações, sobre os quais elaboro essa análise, utiliza-se o termo “imprensa alternativa”, mas notamos que às vezes esse uso pode levar a algumas confusões já que ganhou um significado muito genérico.

A seção “Imprensa Alternativa” do projeto Memórias da Ditadura, por exemplo, -de grande utilidade tanto para o pesquisador da área como para o grande público – engloba “Os pioneiros da imprensa alternativa”, “Os clandestinos”, “Os veículos alternativos”, “Os alternativos sociais”, “Jornais de partidos, sindicatos e de estudantes” e “Os jornais regionais”. Longe de querer criticar o posicionamento semântico, prefiro simplesmente evitar a utilização do termo “imprensa alternativa”, pois nem os títulos clandestinos nem as publicações assumidamente afiliadas a uma organização partidária ou sindical fazem parte da pesquisa. Por isso, uso o a expressão “imprensa independente”, sem evidentemente negar as posições políticas e ideológicas dos membros das redações.

Millôr Fernandes. Década de 1980. Autora: Cynthia Brito (Creative Commons)


Essas questões se inserem dentro de uma perspectiva de história cultural e política e pretendem ressaltar a importância das imagens no trabalho dos historiadores, inspirando-se em vários especialistas que usaram fontes iconográficas como objeto de suas pesquisas. Às várias formas de humor publicadas nas páginas das publicações analisadas, aos desenhos premiados no Salão Internacional de Humor de Piracicaba, agregam-se os conteúdos escritos dos mesmos títulos, já que muitas vezes operava-se um jogo entre o texto e a imagem para expressar algumas mensagens. Além disso, uso fontes escritas dos arquivos das polícias políticas e dos órgãos responsáveis pela censura, assim como entrevistas realizadas com jornalistas, gravuristas e cartunistas. Minha reflexão segue a complexidade e as várias características do regime militar, organizo meus questionamentos segundo um plano cronológico e temático.

Desde o golpe militar de 1964 até o Ato Institucional n. 5, em 1968, os cartunistas afiaram suas armas, fazendo valer a herança humorística brasileira. Esse período corresponde ao primeiro momento repressivo, sob o governo de Castelo Branco e o começo de Costa e Silva. Apesar da existência de uma relativa liberdade de expressão, o regime foi rapidamente institucionalizado e o autoritarismo cresceu. A principal publicação independente durante esta fase foi a Pif-Paf, um título precursor, criado pelo intelectual Millôr Fernandes em 1964. O estudo aprofundado da publicação, do diretor e das formas humorísticas empregadas por eles nos permitem esclarecer alguns mitos vigentes sobre os primeiros anos do regime militar à luz do humor gráfico e político brasileiro praticado até o final de 1968. Trata-se igualmente de definir as principais técnicas usadas para lutar contra o crescimento das medidas autoritárias por intermédio do prisma da derrisão política.

Durante a segunda fase, do ano 1969 até 1975, caracterizada pela intensificação da repressão sob o governo Médici e o começo do governo Geisel, o regime militar armou-se de novas leis com o objetivo de institucionalizar a censura e modificou de fato as condições da mobilização política. As várias formas da resistência cultural, caracterizada pelo paradoxo da convivência de projetos alternativos com a inserção crescente da cultura na lógica de mercado, foram afetadas pela censura. As publicações independentes sofreram uma vigilância acirrada marcada pela suspeita de subversão e consequentemente consolidaram o arsenal de ferramentas de luta política dentro do qual o humor gráfico ocupava um lugar privilegiado, por ser uma das mais eficazes para contornar as proibições durante os chamados “anos de chumbo”.

Finalmente, o humor gráfico tornou-se um espelho da diversificação e do enriquecimento das lutas empreendidas pela imprensa independente a partir do início da abertura política, em 1975, até o começo da década de 1980. Durante os primeiros anos dessa lenta abertura, a repressão tornou-se gradualmente menos aguda sob o governo de Geisel e começo de Figueiredo. Cabe lembrar que a repressão não para de um dia para outro e que novas formas de violência política assim como práticas de coibição impostas à imprensa independente surgiram nesta fase. O ano 1974 corresponde à centralização da censura prévia em Brasília; fenômeno que provocaria uma série de problemas no tocante ao processo de transferência do controle para as redações. Novas temáticas culturais e intelectuais nasceram nas páginas dos jornais independentes do corpus analisado, que tentaram enriquecer e ampliar a definição da luta política. Os movimentos minoritários encontraram na imprensa independente e no humor novos espaços de expressão: imprensa negra, imprensa feminista, imprensa de defesa dos povos indígenas e do meio ambiente, imprensa homossexual, etc.

Ao mesmo tempo, em 1974, o Salão de Humor de Piracicaba nasceu no interior do estado de São Paulo, e passou a ser Internacional a partir da sua terceira edição, em 1976. Elaborado a partir da iniciativa de cartunistas e representantes políticos locais, o projeto de criação de um evento exclusivamente dedicado à difusão e promoção do humor gráfico recebeu o apoio de alguns dos desenhistas mais famosos do país na época. No âmbito desta pesquisa, tive acesso aos arquivos do evento, conservados no Centro Nacional de Documentação, Pesquisa e Divulgação de Humor Gráfico de Piracicaba: cartazes das edições, desenhos premiados, arquivos internos do Salão, correspondências, contas, orçamentos e relatórios, revistas de imprensa das distintas edições, entre outros documentos.

Nani, desenho censurado em Brasília e devolvido ao cartunista, sem data (segunda metade dos anos 70). Direitos de utilização e reprodução da imagem sem fins lucrativos concedidos à autora


Esse material riquíssimo revela alguns questionamentos intrinsecamente ligados ao conjunto da pesquisa: será que o humor gráfico realmente foi um instrumento de resistência e oposição à ordem estabelecida pelos militares? Quais foram as estratégias desenvolvidas pelos desenhistas para evitar a censura? Quais condições permitiram o nascimento em 1974 do Salão, que se tornou um lugar de encontro de cartunistas brasileiros, latino-americanos e até europeus e estadunidenses? Como entender e explicar uma tal longevidade e a ausência de censura? Em qual medida e por quais motivos as autoridades deixaram acontecer ou toleraram as manifestações de humor gráfico? Como entender a existência de uma certa margem de manobra no nível municipal, em comparação com as políticas repressivas e censórias praticadas no nível federal?

A minha periodização não inclui propositalmente os últimos anos do regime militar até 1985. A imprensa independente, tal como tentamos defini-la neste trabalho, tem algumas características específicas totalmente ligadas ao contexto político brasileiro, que começaram a sumir a partir do começo dos anos 1980, dando lugar ao desenvolvimento de uma imprensa intrinsecamente ligada às organizações políticas partidárias que militavam pelo retorno da democracia. O principal objetivo de meu trabalho é o entendimento dos mecanismos combativos e militantes empregados pela distintas formas de humor gráfico estudadas, que constituem um prisma revelador das lutas políticas conduzidas por certos setores da sociedade brasileira sob o regime militar marcado pela censura e pela repressão.

A partir do começo dos anos 1980, o humor gráfico voltou a ser mais aceito na grande imprensa e se difundiu na paisagem do jornalismo escrito. Não significa que não merece mais ser objeto da História, mas sim que minhas problemáticas desenvolvidas ao redor dos interstícios da legalidade não cabem mais neste estudo. Fica para a próxima. Afinal, através desse estudo dos usos do humor gráfico publicado em meios independentes dos anos 1960 ao começo dos 1980, pretendo contribuir para a elaboração de uma História política, cultural e social do regime militar brasileiro e de seus vínculos com os movimentos de oposição à repressão e ao autoritarismo.

Mélanie Toulhoat é historiadora.

 

Para saber mais:

Bernardo Kucinski. Jornalistas e Revolucionários. Nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: Editora Página Aberta, 1991.

Herman Lima. História da Caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1963.

Isabel Lustosa (Dir.). Imprensa, humor e caricatura: a questão dos estereótipos culturais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011.

Laurent Martin. Le rire est une arme. L’humour et la satire dans la stratégie argumentative du Canard Enchaîné. In: A contrario, n. 12, 2009, p. 26-45.

Eric Michaud. La construction de l’image comme matrice de l’histoire. In: Vingtième Siècle. Revue d’histoire, n. 72, 2001, p. 41-52.

Marcos Napolitano. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014.

Maria Paula Nascimento Araújo. Experiências de resistência ao regime militar (1964-1985). In: Dimensões, vol. 13, 2001, p. 104-111.

Marcelo Ridenti. Em busca do povo brasileiro. Artistas da Revolução, do CPC à era da TV. São Paulo: Editora Unesp, 2014.

Waldomiro Vergueiro. O humor gráfico no Brasil pela obra de três artistas: Ângelo Agostini, J. Carlos e Henfil. In: Revista USP, n. 88, 2010-2011, p. 38-49.

 

Crédito da imagem de destaque: Unplash.

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