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Foto do escritorRodrigo Rui

Tecendo uma “revolução”: a moda-política de Zuzu Angel

Atualizado: 24 de mai. de 2022

“a história da moda é ‘história de projetos de vida’, ‘a história de como éramos e também de como poderemos e poderíamos ser’, uma chave para compreender as transformações da cultura” (CALANCA, 2011, p. 38).

Com esta bela epígrafe, inicio a coluna Costurando a História: moda e cultura no Brasil, que será um espaço de debate das relações da moda com a História, principalmente no período da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985). Nesta coluna, falarei de temas do campo da História da moda, conduzindo discussões que nos façam refletir sobre a importância da moda e do vestuário para a pesquisa histórica, pois é um campo frequentemente relegado a um papel secundário em nossa disciplina.

Como disse o filósofo marxista Walter Benjamin, “as modas são um medicamento que deve compensar na escala coletiva os efeitos nefastos do esquecimento. Quanto mais efêmera é uma época, tanto mais ela se orienta na moda.” (BENJAMIN, 2009, p. 112). A moda também adentra as esferas política, econômica, social e cultural. Assim, pensaremos a moda como um complexo sistema regido por uma constante renovação, sendo usada como um importante instrumento de distinção social, como abordaram Benjamin e Pierre Bourdieu em suas obras, assim como um forte demarcador de gênero, faixa etária, raça e grupos sociais. A moda surgiu de uma necessidade de diferenciação num contexto de (re)urbanização e de ascensão econômica da burguesia, no qual as diferentes classes conviviam nas cidades, mas apartadas pela vestimenta, entre outros elementos.

Neste espaço, abordarei principalmente a moda dos anos 1960 e 1970, pois além de ser um período de constante repressão, de corpos e de ideias, houve também uma marcada ebulição cultural, artística e ideológica em nosso país. E nada mais justo, para começar essa coluna, do que com um texto sobre Zuleika Angel Jones, ou simplesmente, Zuzu Angel.

Nascida em Minas Gerais em 1921, foi no Rio de Janeiro que Zuleika Angel se consolidou profissionalmente como costureira e criou a marca Zuzu Angel, pela qual ficaria conhecida até os dias de hoje. Após se casar com um estadunidense, ela teve três filhos. Entre eles, Stuart Angel Jones, que ficaria conhecido por sua militância contra a ditadura, atuando no Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8).

Com roupas vestidas pela primeira-dama à época, Yolanda Costa e Silva, e por celebridades conhecidas em nosso país nos anos 60 e 70, Zuzu Angel se consolidou como um dos principais nomes da moda brasileira, junto de famosos estilistas como Clodovil Hernandes e Rui Spohr. Estes e outros estilistas se destacavam, cada um à sua maneira. Zuzu Angel passou a ser uma das pioneiras do movimento de abrasileiramento da moda, conjugando vários elementos naturais e culturais de nosso país, com referências ao cangaço e às baianas, utilizando crochê em suas criações, e tentando levar uma imagem alegre e positiva do Brasil para o mundo.

Paralelamente ao trânsito de Zuzu Angel pelos espaços de poder da ditadura, seu filho Stuart militava contra o regime, atuando em movimentos clandestinos. Em 1971, porém, foi preso pelas forças de repressão, sem ter-se notícias de seu paradeiro, o que levou sua mãe a começar uma intensa procura por ele. Frente ao fracasso de sua iniciativa pelas vias institucionais (aparelhadas pelos militares), Zuzu Angel politizou suas criações para denunciar os abusos do regime, principalmente diante da comunidade internacional.

Inicialmente coloridas e vivazes, em contraste com o duro e violento contexto social e político da ditadura civil-militar, a vida e a obra da estilista sofreram uma reviravolta com o desaparecimento de seu filho Stuart, culminando no manifesto político que passaria a ser a coleção International Dateline Collection III – Holiday and Resort, desfilada em Nova Iorque ainda em 1971, impactando a indústria da moda e a sociedade brasileira como um todo.

Em setembro de 1971, foi realizado, na cidade de Nova Iorque, o desfile da coleção intitulada International Dateline Collection III – Holiday and Resort, que contaria com três atos: o primeiro sendo o Holiday, o segundo o Resort e o terceiro um manifesto em forma de roupas. Os dois primeiros atos mostraram o que de fato já era costume nas criações de Zuzu Angel, como cores diversas, roupas despojadas e seus anjos, que eram a marca registrada de sua grife. Mas, no terceiro momento, as lúgubres vestimentas tomaram conta da passarela, assim como canhões bordados nos vestidos, aviões de guerra, anjos ensanguentados e pássaros aprisionados em gaiolas. Como podemos ver na figura 1, os bordados com cores diversas contrastam com a imagem de repressão que a estilista quis passar. Os desenhos parecem ter sido feitos por uma criança, a criança que aparece bordada atrás de grades olhando para o sol.


Vestido de protesto político de manga longa (1971). Acervo digital do Instituto Zuzu Angel

Na imagem a seguir, percebemos que a roupa retrata com mais força o luto. A roupa tem tons claros, mas é contrastada pelas faixas pretas que compõem a vestimenta. A braçadeira no lado esquerdo da modelo tem um desenho que parece ser um anjo. Já a gola possui um pássaro atrás de grades e, do outro lado, um pequeno anjo. A liberdade do seu filho foi arrancada, o seu corpo estava desaparecido. A mãe não sabia se encontraria o filho com vida ou em uma cova rasa. Mesmo circulando em espaços de poder da época, em contato com políticos ligados ao regime, vestindo a primeira-dama, mesmo tendo influência dentro da elite carioca, o seu filho militante socialista foi sequestrado pela ditadura.


Blusa e saia xadrez (1971). Acervo digital do Instituto Zuzu Angel

Analisando os jornais da grande imprensa, percebemos que o teor político do desfile foi apagado. Diferente de suas coleções anteriores, que despontavam nos periódicos com imagens das roupas, longos textos com análises e elogios, desta vez foi diferente. O Jornal do Brasil, por exemplo, em 22 de setembro de 1971, lançou uma pequena matéria intitulada “Os manequins de Zuzu”, no qual só relatava que Zuzu Angel fez um dos desfiles mais importantes de sua vida e que uma das modelos foi a filha do prefeito de Nova Iorque Já o jornal O Globo lançou uma matéria que ocupava quase uma página inteira intitulada “Zuzu Angel e a sua passarinhada”. À primeira vista, o texto parece exaltar a estilista, afirmando que o desfile teve dois atos e que as roupas foram compostas por muita alegria, ignorando (ou censurando?) totalmente as roupas-políticas que fecharam o desfile naquele dia. Entretanto, como disse o historiador James Green:


Embora na fase inicial de sua odisseia em busca de Stuart o regime militar brasileiro tivesse proibido qualquer menção a ela nos meios de comunicação, a notícia de seu desfile de modas politizado, assim como de seus esforços para localizar o filho, se espalhou nos círculos de classe média antiditadura (GREEN, 2009, p. 428).

Assim, Zuzu Angel denunciou o que estava acontecendo com seu filho, a repressão das ideias dissidentes de jovens como ele, inclusive em coleções posteriores. Depois de descobrir que o filho de fato havia sido assassinado, a busca da estilista seria pelo seu corpo. Esta busca acabou interrompida em abril de 1976, quando, passando de carro pelo Túnel Dois Irmãos (hoje chamado de Túnel Zuzu Angel), a estilista sofreu uma emboscada e morreu em um acidente de carro. No entanto, a certidão de óbito oficial só saiu em 2019, tanto de Zuzu Angel quanto de Stuart, afirmando a “razão de morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição sistemática e generalizada à população identificada como opositora política ao Regime Ditatorial de 1964 a 1985”.

“Quem é essa mulher?”, indagou Chico Buarque em sua música Angélica, de 1981, feita em homenagem à sua amiga Zuzu. Podemos responder que Zuzu Angel foi, de fato, um dos nomes mais emblemáticos e importantes da moda brasileira, tendo inovado quando quis tecer uma moda que tentasse se desvincular da moda europeia, e reforçando a brasilidade e nossa cultura em suas criações. Mas sua vida sofreu uma reviravolta depois da prisão, tortura e morte do seu filho Stuart, levando a estilista a ir contra o regime, denunciando-o nos espaços em que circulava. Zuzu Angel teceu um manifesto de repúdio à ditadura por meio de sua moda, nos mostrando que a moda também pode ser subversiva.

A moda também é, portanto, linguagem e expressão, e podemos usá-la de diversas maneiras. Dentre elas, denunciar um regime que assassinou e encarcerou milhares de pessoas em nosso país.


Zuzu Angel com os filhos Hildegard, Ana e Stuart (1958). Acervo digital do Instituto Zuzu Angel.

Percebemos, então, a importância do estudo da moda no campo da História e, nesse caso, a moda brasileira. Como disse a historiadora Daniela Calanca: “a moda é uma chave para entender as transformações da cultura”. Isso também se aplica ao Brasil. Podemos compreender os processos de ascensão de uma classe para outra por meio da vestimenta, entendemos as demarcações de gênero, como também percebemos o “espírito” de uma época através da moda, assim como aspectos de denúncia.

A moda é expressão, é política, é subversão. A moda é história!


 

Referências

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Mortos e desaparecidos políticos/ Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012.

_________________. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007.

________________. O poder simbólico. São Paulo: Difusão Editorial, 2010.

BOURDIEU, Pierre; DELSAUT, Yvette. O costureiro e sua grife: contribuição para uma teoria da magia. Educação em Revista, Belo Horizonte, n. 34, 2001.

CALANCA, Daniela. História Social da Moda. 2.ed. São Paulo: SENAC, 2011.

CRANE, Diana. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas. 2.ed. São Paulo: SENAC, 2013.

GREEN, James N. Apesar de vocês: Oposição à ditadura brasileira nos

Estados Unidos, 1964-1985. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.


MEDEIROS, Rodrigo Rui Simão de. Panos vermelhos, bandeiras de sangue: Política e resistência na moda de Zuzu Angel (1966-1976). Monografia (Trabalho de conclusão de curso – Licenciatura em História) – Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Mossoró, 2019.

PRADO, Luís André do; BRAGA, João. História da moda no Brasil: das influências às autorreferências. Barueri: Disal Editora, 2011.

RIBEIRO, Mariana Tagé Verissimo; MESQUITA, Cristiane. Design de moda e

brasilidade: da indumentária colonizada à expressividade de Zuzu Angel.

Revista de Iniciação Científica, Tecnológica e Artística, São Paulo. Vol.5 n 2, p.

22-34, novembro de 2015.

SVENDSEN, Lars. Moda: uma filosofia. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2010.


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