Terrorismo em papel e nanquim: atentados de extrema-direita nas charges
No final dos anos 1970 e começo da década seguinte, o Brasil foi sacudido por uma onda de atentados terroristas promovidos por extremistas de direita. Grupos como o Movimento Anticomunista (MAC), o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), a Vanguarda de Caça aos Comunistas (VCC), a Aliança Anticomunista Brasileira (AAB), a Falange Pátria Nova (FPN), o Comando Delta, o Movimento de Renovação Nazista (MRN), entre outros tantos, promoveram ameaças e ataques à bomba contra entidades de classes, órgãos da imprensa, sindicatos, bancas de jornais, escolas e universidades.
De modo geral, os terroristas eram policiais e militares, elementos ligados aos órgãos de segurança, que temiam a perda de espaço político e econômico com o processo de distensão da ditadura, o qual vinha ocorrendo desde meados da década de 1970 (Resende, 2015; Fico, 2001; Chirio, 2012). Além disso, mostrando-se fortemente anticomunistas, esses extremistas entendiam que a abertura do regime poderia abrir espaços para atuação do “inimigo marxista”, que estaria se infiltrando em diversos setores da sociedade, em projetos secretos de conquista do poder institucional (Farias, 2023a).
O objetivo deste texto é analisar como os referidos atentados de extrema-direita foram apresentados em algumas das charges veiculadas na imprensa da época, no contexto das tensões e dos embates políticos que marcaram o processo de distensão/abertura da ditadura civil-militar. O recorte se restringe ao período compreendido entre julho de 1980 e julho de 1981, no qual entendo ter ocorrido o ápice dos atentados de extrema-direita no Brasil no tocante à sua quantidade e agressividade.
Algumas definições
Embora não haja consenso sobre uma definição exata, as charges (do francês charger, “carregar”, “exagerar”) seriam desenhos com intenções críticas e zombeteiras, de traços exagerados ou grotescos. Nelas, é abordado um fato ou acontecimento específico, geralmente político e de conhecimento público, ou de determinadas pessoas (Teixeira, 2005, p. 22; Arbach, 2007, p. 210). Por vezes, a palavra charge é usada indistintamente como sinônimo de caricatura (do latim caricare, no sentido igualmente de “carregar”, “exagerar”), embora haja quem entenda que este termo só pode ser aplicado para designar retrato pessoal de indivíduos conhecidos, com objetivos humorísticos (Motta, 2006, p. 15; Fonseca, 1999, p. 17, 18 e 26; Arbach, 2007, p. 209 e 210; Teixeira, 2005, p. 92).
Já o cartum (do inglês cartoon, “cartão”) é um desenho humorístico que faz uma crítica dos costumes, tratando de assuntos do cotidiano de uma sociedade ou cultura, temas universais (um náufrago, um amante, a guerra, um palhaço etc.) e não datados. Em outros termos, traz temas de caráter mais “atemporal” ou moral, representando uma situação que penetra no domínio da invenção; tais situações imaginárias não dependem do contexto específico de uma época (Macedo, 2012, p. 34; Cavalcanti, 2008, p. 37; Arbach, 2007, p. 212; Teixeira, 2005, p. 102).
Em virtude dos elementos relacionados à onda terrorista – violência, medo, destruição, mortes etc. –, observamos, nas charges consultadas, a ênfase no aspecto da criticidade, ainda que elas pudessem conter também algum viés humorístico ou que provocasse riso. É algo justificável, afinal, a linha entre o humor e a grosseria é facilmente transitável e a arte que visa ao riso ou à denúncia pode se transformar em peça de mau gosto e indelicadeza (Motta, 2006, p. 43). Isso implica certo equilíbrio e criatividade no exercício do trabalho do chargista. Assim, compreensivelmente, os alvos e os respectivos ataques não foram, em si, focos de comicidade. Mostrar destruição e pessoas feridas ou com medo talvez não induzisse a risos, mas a desconforto e repulsa. Parece-nos que a intenção dos desenhos foi muito mais a de sensibilizar o leitor – o que, em termos práticos, significava condenar os atos extremistas e apoiar o processo de abertura, endossando uma visão, ainda hoje presente, de uma sociedade desde sempre democrática e resistente à ditadura.
Bancas em chamas
Dos jornais consultados, o primeiro a trazer uma charge abordando os atentados foi o Jornal do Brasil, de 27 de julho de 1980 (Fig. 1). O foco do desenho eram os ataques às bancas de jornais. Os atentados haviam se intensificado em fins de 1979, logo após a aprovação da Lei da Anistia, a libertação de vários presos políticos e o regresso ao país de muitos dos exilados, o que irritou os mais extremados conservadores, fossem civis ou militares.
Não surpreende, pois, o crescente de ataques terroristas ao longo do primeiro semestre de 1980. Entre junho e setembro daquele ano, os ataques se intensificaram, tendo como um dos alvos principais os jornaleiros. Há registros de bancas atacadas ou ameaçadas em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Londrina, Santos, Niterói, Santa Rosa, Santo Ângelo, Ribeirão Preto, Belém, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Brasília, Curitiba, Porto Velho, João Pessoa, entre outras cidades (Farias, 2023b).
Os extremistas de direita entendiam que as bancas de jornais, ao venderem periódicos da chamada imprensa nanica, estavam servindo aos planos da “subversão” em difundir o comunismo e seus valores na sociedade.
A charge referida ao lado é de autoria de Ziraldo, à época já um desenhista dos mais prestigiados do país e com trajetória vinculada ao Pasquim, jornal alternativo de esquerda fundado em 1969 e opositor ferrenho da ditadura. Embora o conteúdo das charges de Ziraldo no Jornal do Brasil estivesse longe daquelas publicadas no Pasquim, bem mais questionadoras e debochadas, percebe-se certa autonomia e criticidade do desenhista (Ferreira, 2019, p. 16; Motta, 2013, p. 66), talvez pelo clima de distensão imperante no país e por seu prestígio profissional.
O desenho, para além da óbvia denúncia do terrorismo – o primeiro incêndio de uma banca ocorrera 11 dias antes, em Belo Horizonte, a 16 de julho –, permite outras interpretações. A imagem tem um caráter dantesco, assustador, ainda que não deixe de trazer ironias, quando se observa os detalhes. Vê-se uma banca de jornais tomada por um incêndio, cujas chamas lembram a extremidade de uma tocha ou uma pira, irradiando luminosidade e dando à imagem um espectro ritualístico.
Vale lembrar que os Jogos Olímpicos de Moscou estavam acontecendo naquele momento. Como sabemos, entre os símbolos das Olimpíadas estão a pira e a tocha olímpicas (Machado, 2006). Ou seja, a charge fez um paralelo entre o famoso evento esportivo e os ataques da extrema-direita no Brasil. O fogo em Moscou alimentava as disputas esportivas, enquanto no Brasil, as chamas queimavam bancas de jornais. Em comum, sob certa perspectiva, talvez o nacionalismo. Na União Soviética, as medalhas dos atletas endossavam o sentimento de identidade e pertencimento aos Estados nacionais, como o esporte possibilitou ao longo do século XX (Rubio, 2001); no Brasil, os terroristas diziam agir em defesa e amor pela Pátria, para combater o comunismo – daí o porquê de a charge trazer um trecho do hino nacional, o que pode ser percebido como uma ironia.
Pornô em revista
Realizados os primeiros ataques às bancas, os grupos terroristas começaram a justificar os atentados com a alegação de que os jornaleiros estavam também negociando revistas eróticas. Para extremistas de direita, a pornografia era utilizada pelos comunistas para corromper os valores da sociedade, facilitando seu projeto de poder. Na abertura, com o abrandamento da censura política e moral, as pessoas passaram a buscar filmes e publicações de caráter erótico/pornográfico cujo acesso o regime até então impedia (Fico 2002). Assim, para os terroristas, os ataques aos jornaleiros eram uma forma de defender os bons valores, a família, a religião e a pátria.
Realizados os primeiros ataques às bancas, os grupos terroristas começaram a justificar os atentados com a alegação de que os jornaleiros estavam também negociando revistas eróticas. Para extremistas de direita, a pornografia era utilizada pelos comunistas para corromper os valores da sociedade, facilitando seu projeto de poder. Na abertura, com o abrandamento da censura política e moral, as pessoas passaram a buscar filmes e publicações de caráter erótico/pornográfico cujo acesso o regime até então impedia (Fico, 2002). Assim, para os terroristas, os ataques aos jornaleiros eram uma forma de defender os bons valores, a família, a religião e a pátria.
A charge de Sinfrônio, de 8 de outubro de 1980 (Fig. 2), em O Povo, apresenta com deboche, como setores da sociedade se mostravam indignados com as revistas eróticas e evidenciando, por outro lado, as críticas feitas a tal postura – especialmente por setores mais à esquerda. Estes últimos enfatizavam a existência de outras questões mais preeminentes no país, como os problemas sociais, a crise econômica, a inflação e a concentração de renda. No desenho de Sinfrônio, enquanto um transeunte reclama das revistas, com mulheres nuas, expostas na parte superior da banca, ignora as publicações que abordam a fome da população e a carestia. Para enfatizar ainda mais o contraste, ao lado do transeunte uma criança maltrapilha estende a mão, pedindo ajuda. Sinfrônio de Sousa Lima Neto, que trabalhou no jornal O Povo entre 1975 e 1991, se tornou um dos principais nomes do humor gráfico cearense, atuando na produção de histórias em quadrinhos e em charges animadas para a televisão e para o mercado publicitário (Brilhante, 2012).
De onde surgem as bombas?
A alegação segundo a qual os atentados seriam de autoria das próprias esquerdas – ou, pelo menos, a dúvida sobre qual “lado ideológico” seria o responsável pelos ataques – foi tema de uma charge de Sinfrônio em O Povo, em 30 de agosto de 1980 (Fig. 3). No desenho, a bola de boliche é uma bomba, que rapidamente se movimenta para atingir os pinos. Estes, humanizados, mostram-se desesperados com a iminência do choque e da explosão, mas não sabem para que lado fugir. Para uns, a solução diante da onda terrorista é se apegar à direita, presumindo-se que seriam elementos de esquerda os culpados pelos atentados. Para outros, a saída estaria à esquerda, visto que os extremistas eram ligados à direita (como de fato o eram).
Outra associação comum nas charges do período foi entre os ataques e a delicada situação econômica do Brasil. É o que faz novamente Sinfrônio em O Povo, em 6 de maio de 1981 (Fig. 4). Um motorista, com expressões faciais demonstrando raiva, aponta, em tom condenatório, a bomba de gasolina, dando a entender o quão irritante era o preço do combustível vendido. Como sabemos, os preços dos combustíveis impactam bastante no cotidiano das pessoas no que toca ao transporte e ao valor de mercadorias – e seus aumentos eram consideráveis e rotineiros nos anos 1980 em virtude da espiral inflacionária (Napolitano, 2018). Note-se que a bomba de combustíveis apresenta as conhecidas letras da logomarca da empresa Petrobras, mas o BR pode ser pensado igualmente em uma referência ao próprio Brasil.
A charge faz, então, um trocadilho na busca do humor, mas com uma mensagem também política. A bomba de combustível ameaçava explodir com a economia, tal como estava acontecendo com os petardos dos terroristas, que incendiavam a abertura da ditadura. Isto é, se os atentados eram uma ameaça ao Brasil, a inflação também o era, tornando cada vez mais difícil a vida das pessoas, corroendo cada vez mais o apoio popular ao regime e impactando também no processo de flexibilização política.
Terrorismo impune
No conjunto de charges levantadas na pesquisa, foram frequentes as denúncias acerca da morosidade e da ineficiência do governo nas investigações dos atentados. Não raro, era apontado o envolvimento de agentes da própria ditadura nas ações terroristas – e, de fato, a impunidade marcou a onda terrorista na abertura (Fico, 2001).
Uma charge de Ziraldo, tratando da impunidade, foi publicada no Jornal do Brasil de 6 de junho de 1981 (Fig. 5), no contexto das demoradas e confusas investigações sobre o caso Riocentro. Neste episódio, ficou explícita pela primeira vez a relação dos integrantes da comunidade de informação e segurança com os grupos terroristas que agiam havia meses no país. Na noite de 30 de maio de 1980, dois militares, ligados ao DOI-Codi do I Exército, tentaram colocar bombas no antigo Centro de Eventos do Rio de Janeiro. Uma das bombas acabou estourando dentro de um carro, levando a óbito um dos militares que montava o explosivo. O governo e as Forças Armadas realizaram uma investigação confusa, que, ao fim, inocentou os militares envolvidos no caso. À medida que as investigações eram travadas, ia ficando patente que, apesar das evidências, o caso ficaria igualmente impune.
Na charge, um misterioso elemento – presumidamente, um agente dos órgãos de informação, pelo sobretudo que usa – tem uma bomba em um dos bolsos, o que mostra seu envolvimento com a onda terrorista. O personagem saltita alegremente, como mostram a curvatura do corpo e os movimentos dos braços e pernas, e pronuncia dizeres comuns a crianças quando de suas brincadeiras de “pega-pega”. O “Ninguém me pega” citado, aqui, remete à omissão das autoridades quanto aos crimes dos terroristas. Observe-se que o alegre saltitar do personagem se dá em frente ao prédio do Congresso Nacional e à Esplanada dos Ministérios, com seus edifícios típicos. Em outros termos, ao mostrar no desenho um personagem zombeteiro, Ziraldo faz uma crítica aos governantes, que, caso se esforçassem mais, poderiam facilmente até capturar os terroristas, como se fosse uma brincadeira infantil, tal a quantidade de evidências acerca dos culpados, especialmente os envolvidos no episódio das bombas do Centro de Eventos do Rio de Janeiro.
Ziraldo e Sinfrônio, em seus trabalhos, mostraram como amplos setores da sociedade condenaram os ataques da extrema-direita, expressando o apoio de amplos setores da sociedade em torno da democracia e da crítica à ditadura naquele momento. Nas charges, foram abordados diversos elementos relacionados aos atos terroristas: as bancas de jornais, alvos dos atentados, por venderem periódicos da imprensa alternativa e revistas eróticas; o medo e angústia coletiva quando os atentados começaram a deixar vítimas; as acusações de envolvimento de agentes do Estado com os atos terroristas; a impunidade que beneficiou os extremistas. As charges, assim, permitem entender, em detalhes, um conjunto de crenças e manifestações que permitem refletir sobre os debates travados em torno da abertura da ditadura civil-militar.
Referências:
ARBACH, Jorge Mtanios Iskandar. O fato gráfico: o humor gráfico como gênero jornalístico. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
BRILHANTE, Matilde de Lima. Negociando com o traço: a atuação de chargistas na imprensa de Fortaleza na década de 1980. sÆculum - REVISTA DE HISTÓRIA, João Pessoa, v. 27, p. 307-324, jul./dez. 2012.
CAVALCANTI, Maria Clara Catanho. Multimodalidade e argumentação na charge. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008.
CHIRIO, Maud. A política nos quartéis: revoltas de oficiais na ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
FARIAS, José Airton de. A extrema-direita explosiva: anticomunismo e atentados na distensão da ditadura civil-militar. Locus: Revista de História, v. 28, n. 2, p. 351–375, 2023a.
FARIAS, José Airton de. Terrorismo no Nordeste: atentados de extrema-direita em Fortaleza na abertura da ditadura civil-militar. Sæculum – Revista de História, v. 28, n. 48, p. 45–62, 2023b.
FERREIRA, Fábio Donato. A redemocratização do riso: as charges da grande imprensa na reabertura política (1979-1985). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2019.
FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record, 2001.
FICO, Carlos. “Prezada censura”: cartas ao regime militar. Topoi, Rio de Janeiro, nº 5, p. 251-286, dez. 2002.
FONSECA, Joaquim da. Caricatura: a imagem gráfica do humor. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999.
MACHADO, Raoni. Esporte e religião no imaginário da Grécia Antiga. Dissertação (Mestrado em Educação Física) – Universidades de São Paulo, São Paulo, 2006.
MACEDO, José Emerson Tavares de. A linguagem humorística das charges e as “Diretas Já”: no traço dos chargistas dos jornais Diário da Borborema e Jornal da Paraíba. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande, 2012.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Jango e o golpe de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A ditadura nas representações verbais e visuais da grande imprensa: 1964-1969. Topoi, v. 14, n. 26, p. 62-85, jan./jul. 2013.
NAPOLITANO, Marcos. A imprensa e a construção da memória do regime militar brasileiro (1965-1985). Estudos Ibero-americanos, Porto Alegre, v. 43, n. 2, p. 346-366, maio-ago. 2017.
RESENDE, Pâmela de Almeida. Os vigilantes da ordem: a cooperação Deops/SNI e a suspeição aos movimentos pela anistia (1975-1983). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2015.
RUBIO, Kátia. O atleta e o mito do herói. São Paulo: Editora Casa do Psicólogo, 2001.
TEIXEIRA, Luiz Guilherme Sodré. Sentidos do humor, trapaças da razão: a charge. Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, 2005.
Como citar este artigo:
FARIAS, Airton de. Terrorismo em papel e nanquim: atentados de extrema-direita nas charges. História da Ditadura, 11 jun. 2024. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/terrorismo-em-papel-e-nanquim-atentados-de-extrema-direita-nas-charges. Acesso em: [inserir data].