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Foto do escritorVictor Traldi

"Tio, o que vai acontecer com a Ucrânia?"

7h15, 24 de fevereiro de 2022. 5º ano do Ensino Fundamental. Aula de História.


“Pessoal, como vocês sabem, semana que vem é Carnaval, então não vai ter aula. Pra hoje, a coordenação me pediu que eu desse uma aula sobre o Carnaval, sobre a origem dele, sobre as diversas formas de se brincar o Carnaval no Brasil e no mundo... mas aconteceu uma coisa nessa madrugada, e eu preciso conversar com vocês sobre isso”. “O que, tio?” “Hoje, dia 24 de fevereiro de 2022, a Rússia invadiu a Ucrânia”. “Ah! Eu vi no jornal, antes de vir pra cá”. “Tio, meu pai falou que vai começar a Terceira Guerra Mundial”. “Pode cair uma bomba aqui no Brasil, tio?” “Eu não sei o que vai acontecer. No momento, ninguém sabe muito bem o que vai acontecer. Vocês estão presenciando um acontecimento histórico. O que eu quero dizer quando digo que um acontecimento é ‘histórico’?”


*


5h30, 24 de fevereiro de 2022. Sem dormir e acompanhando as notícias que chegam da Ucrânia. Uma transmissão ao vivo da Deutsche Welle mostra jornalistas e especialistas conversando sobre as motivações de Putin, as medidas que Zelensky toma para defender o território ucraniano, as sanções impostas pelos Estados Unidos e pela União Europeia à Rússia. Por vezes, as falas dos correspondentes internacionais servem de trilha sonora para imagens de helicópteros russos sobrevoando alguma cidade ucraniana e de explosões ao horizonte. Parece inevitável estabelecer um paralelo com a invasão nazista da Tchecoslováquia, em 1938, seguida pela Conferência de Munique. Auge da “política de apaziguamento” do então primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain, a conferência deixou os tchecoslovacos nas garras de Hitler. Sabemos bem: o “apaziguamento” falhou, a Polônia foi invadida pelos nazistas no ano seguinte, começou a Segunda Guerra Mundial. Isso ocorreu há mais de oitenta anos. Quais lições a Europa tirou desses eventos? A História parece não ser mais a mestra da vida, pelo menos para os ucranianos.


Hora de pegar o ônibus para ir trabalhar. Continuo acompanhando a transmissão da emissora alemã. Ao mesmo tempo, penso que eu não posso fingir que fora da sala de aula não está acontecendo algo grande, que tem a potencialidade de mudar o rumo do planeta. Vendo europeus atacando europeus, me lembro das duras críticas de Aimé Césaire à Europa. Para o poeta martinicano, a Europa era indefensável, um continente que se escandalizou com a barbárie de Hitler, mas que fechou os olhos para o sofrimento igualmente bárbaro que seu colonialismo infligia aos povos não-brancos. Crianças de dez anos conseguem entender o que é barbárie? No dia seguinte ao assassinato de Moïse Kabagambe, um dos alunos do 5º ano disse, com certo pesar e sem saber muito bem o que tinha acontecido, que viu no jornal que “um rapaz negro morreu lá no Rio de Janeiro”. Outros disseram que também tinham visto a notícia. Naquele dia, eu explicava sobre os conceitos de cidadania, moral e ética. Após os comentários dos alunos, expliquei que assassinato e racismo são ações imorais, antiéticas e criminosas. Ações que tiram o direito à vida. Uma das alunas começou a falar sobre um vizinho que também tinha sido assassinado. Não entendi os detalhes do relato, já que a máscara que a aluna usava abafava um pouco sua voz. Não pedi para que ela narrasse novamente o assassinato de seu vizinho. Sim, crianças de dez anos conseguem entender o que é barbárie. Que Césaire me desculpe, mas a guerra voltou à Europa bem no dia em que eu tenho aula no 5º ano.


*


“Por que a Rússia fez isso, tio?” Uma tentativa de explicação do que estava acontecendo se segue. “Vamos voltar um pouco no tempo. A União Soviética, que é um país que não existe mais...” “Por que não existe mais, tio?”

Um pensamento me ocorre: é melhor não entrar a fundo na resposta, pois ela poderia tomar toda a aula. Por outro lado, se eu não explicar bem, um grande ponto de interrogação se formará na cabeça daquele aluno. Após um breve silêncio, começo uma explicação simples, tentando não pecar no conteúdo. União Soviética, OTAN, diplomacia, tropas russas. O mapa mundi que havia na sala não estava mais lá. Desenho no quadro branco um mapa de Rússia e Ucrânia, tremido e fora de escala. Acha que é fácil explicar uma guerra sem um mapa? Busco trazer uma realidade tão distante e tão cruel para a sala de aula, me esforçando para não colocar as crianças em pânico – afinal, eu sei que nenhuma bomba vai cair no Brasil. Ao mesmo tempo, sei que essas crianças vão ouvir várias coisas sobre a invasão, entre verdades e mentiras. A vontade é de simplesmente mostrar as imagens dos bombardeios que assisti dentro do ônibus e dizer: “é isso aqui o que está acontecendo. Vejam.” Fora dos meus pensamentos, alguns alunos não prestam atenção. Outros estão mais preocupados em copiar o mapa malfeito do que em me escutar. Poucos demonstram curiosidade. Nenhum deles viveu uma guerra. Nem eu.


*


“Tio, o que vai acontecer com a Ucrânia? Ela vai se tornar parte da Rússia?” “Eu não sei”. “E as pessoas de lá? O que vai acontecer com elas?” “Eu não sei. As coisas estão acontecendo muito rápido, agora mesmo. Os que têm algum tipo de fé, orem, rezem pelos que estão lá. Os que não têm, mandem suas melhores energias. Eles estão precisando”. “E por que ninguém ajuda a Ucrânia? Por que a OTAN não faz nada?”

Um suspiro profundo.

“Estamos esperando que alguém faça algo”.

Faço questão de não citar nomes de políticos. Não falo de esquerda nem de direita. Apenas digo que o povo ucraniano está passando por grandes dificuldades e que precisamos ter empatia em relação a ele. A vontade é de pedir que imaginem o que sentiriam se a mesma coisa acontecesse no Brasil. Muitas famílias precisariam sair de suas casas e ir para longe. Isso já acontece em outros lugares do mundo, como a Síria, o Líbano, o Afeganistão, o Congo. Milhares de homens seriam convocados para combater a ameaça externa. Os pais e tios dessas crianças seriam convocados. Eu seria convocado.

“Tio, parece que você quer chorar”. “Eu só estou preocupado, querida”. “Você precisa dormir um pouco, tio”. “Eu sei. Eu vou, assim que chegar em casa. Mas, e vocês, já foram em alguma festa de Carnaval?”



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