Um coro para a gente entoar: democracia é só votar?
Nós queremos nossa liberdade Liberdade de pensar e falar Nós queremos escolas pros filhos E mais casas pro povo morar Nós queremos leite, carne e pão Nós queremos açúcar sem cartão Nós queremos viver sem opressão Nós queremos progresso da Nação.
Samba Isto é o que nós queremos de Ataulfo Alves (1946).
Embalando o carnaval de 1946, o samba isto é o que nós queremos foi gravado em dezembro de 1945 por Ataulfo Alves, mas lançado somente dois meses depois. Naquele momento de transição política do Estado Novo para a primeira experiência democrática-liberal brasileira, o samba apresentava um sentido contrário a uma concepção de democracia abstrata, que se baseava no culto à pátria, à ordem e à moral cristã. Esse sentido de democracia esteve presente, principalmente, no discurso oficial das Forças Armadas, mas também compôs manifestações que se tornaram famosas na época, como a entrevista concedida por José Américo de Almeida ao Correio da Manhã, em 22 de fevereiro de 1945.
Extremamente disputada no mundo, devido ao cenário do pós-Segunda Guerra Mundial, a noção de democracia esteve ligada também ao combate à fome e à luta por justiça social. No Brasil, esta era uma defesa feita, especialmente, por diferentes segmentos de estudantes, trabalhadores e pelo Partido Comunista (PCB). Na linguagem política do período, ainda era recorrente a expressão “democracia progressiva”, que tinha como principal demarcador seu “conteúdo antifascista, traduzido em normas constitucionais” (CANFORA, 2007).
Portanto, passadas as eleições presidenciais de 2 de dezembro de 1945, o novo presidente eleito – o general Eurico Gaspar Dutra (Partido Social Democrático - PSD) – era lembrado por diversas manifestações de que democracia não se restringia à eleição e ao voto.
A canção fazia coro, assim, com as reinvindicações de diversos grupos de trabalhadores que, impulsionados por uma bandeira de democracia que promovesse um mínimo de “bem-estar social”, lutavam contra a “carestia da vida”. Estes, através da realização de greves, evocavam uma noção de democracia como uma luta constante por direitos e bem-estar econômico dos cidadãos.
Durante o ano de 1946, houve intensas paralizações em todo o Brasil, destacando-se no plano nacional a greve dos bancários. Já nos planos locais, podemos citar como exemplos a greve dos operários da Companhia Rhodia Brasileira, do Moinho Santista, em São Paulo, e dos trabalhadores das Salinas de Camocim (CE), por sua repercussão na Constituinte. Basicamente, as pautas das greves de 1946 eram: questões salariais, melhores condições de trabalho, o fim de perseguições políticas de patrões e solidariedades a companheiros de ofício.
Contrariando o entusiasmo dos trabalhadores, de que a democracia instauraria um “novo tempo” no Brasil, os grevistas eram geralmente espancados pela polícia, presos e acusados de desestabilizar a transição política. Resistindo, eles denunciavam tais práticas à Assembleia Nacional Constituinte, instituída após o fim do Estado Novo.
Na Assembleia, a maioria dos constituintes oscilavam de posição em relação aos grevistas: ora desenhados como desordeiros, ora como uma pauta não tão urgente. Os comunistas, entretanto, reivindicavam informações sobre o “inquérito de apuração das responsabilidades” das violências, cometidas contra os trabalhadores. Diante da apatia e morosidade do líder pessedista Nereu Ramos, João Amazonas (PCB-DF) retrucava: “os que exigem urgência são os operários espancados pela polícia, em S. Paulo e Fortaleza – palmas nas galerias” (ANAIS DA ASSEMBLEIA CONSTITUINTE, v.1, 11 fev. 1946, p. 121)
Além do debate sobre a fome, o que estava em jogo nesse embate eram os “modos de produção da violência” (FARGE, 2011, p. 23). O Estado tentava legitimar sua violência e a criminalização das greves em nome de um ideal divinizado – por isso intocável – de ordem. As agressões praticadas contra os grevistas eram entendidas por pelos Constituintes do PCB e pelos agredidos como uma continuidade da ditadura. De fato, era uma política que investia no sofrer. Isto é, no sofrimento rebobinado, na dor banalizada, na indiferença com certas carnes consideradas descartáveis. As greves em si já “integram aquelas ocasiões de sofrimento sociais, físicos e políticos” (FARGE, 2011, p. 14).
No século XXI continuamos a conviver com a criminalização das lutas. O assédio político a trabalhadores, infelizmente, não é uma lembrança do século passado. Enquanto os financiadores do terrorismo do dia 8 de janeiro de 2023 foram tratados como manifestantes, aqueles que usam da democracia para o combate às desigualdades são interpretados pelas “forças de segurança” como um mal a ser reprimido.
Do adjetivo liberal de democracia não temos somente que “reaver” uma cidadania política sem medo – com eleições livres, em que o Estado e os cidadãos se submetam a seus resultados –, a separação dos três poderes e a liberdade de expressão (cujo significado foi distorcido, nos últimos anos, pela apologia à violência e ao crime). Tão importantes como esses são a redistribuição de renda e a justiça social, aspectos defendidos não só por comunistas e trabalhadores, mas presentes na semântica do liberalismo social dos anos de 1940.[1]
Precisamos superar essa “liberdade” que privilegiou a propriedade, vigiou as “políticas de igualdade” com desconfiança, e nos perguntar sobre o lugar da equidade. Os assuntos de interesse público não podem ser coagidos por interesses privados e pela interferência dos poderes econômicos. É urgente ainda pensar sobre o lugar do racismo na nossa sociedade.
Na agenda política do Brasil de 1945, já se lutava por uma democracia que combatesse “o preconceito de cor” através da criminalização do racismo. O manifesto produzido no Rio de Janeiro pela Convenção Nacional do Negro, sob a liderança de Abdias do Nascimento e a atuação de Claudino José da Silva (PCB-RJ) na Constituinte foram um importante capítulo na disputa por um conceito não “minimalista” de democracia. Vale então a questão do porquê a historiografia e a Ciência Política, em seus quadros de definições, explicitarem pouquíssimo essas disputas, elegendo as lógicas institucionalistas, associando a democracia somente a determinados interesses liberais.
Afinal, o que nos espera no século XXI? De qual democracia falamos e qual democracia queremos? É possível dizer que se vive em um regime democrático quando este é conivente com a homofobia, misoginia e não garante Direitos Humanos a todas as vidas? Se a democracia “desincorporou o lugar de poder” (LEFORT, 1983) isso não significa que talvez não seja necessário inervá-la!
Nota:
[1] Como pode ser observado em trechos do Manifesto Mineiro, em discursos de estudantes universitários cearenses de vertente liberal e até mesmo de alguns partidários da União Democrática Nacional (UDN) como Virgílio de Mello Franco em 1945 e 1946.
Referências:
BRASIL. Anais da Assembleia Constituinte. v. I. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1946, p. 3- 346.
CANFORA, Luciano. A democracia: história de uma ideologia. Lisboa: Edições 70, 2007.
CASTELLS, Manuel. A crise de legitimidade política: não nos representam. In: ______. Ruptura: a crise da democracia liberal. São Paulo: Zahar, 2018.
FARGE. Arlette. Lugares para a História. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.
Jornal Unitário, Fortaleza, jan./fev. 1946. Disponível no acervo digital do Instituto Histórico, Antropológico e Geográfico do Ceará.
KOSELLECK, Reinhart. Histórias de conceptos: estudios sobre semántica y pragmática del lenguage político y social. Tradução de Luis Fernández Torres. Madrid: Editorial Trotta, 2012.
LEFORT, Claude. A invenção democrática: os limites da dominação totalitária. São Paulo: Brasiliense, 1983.
Mattos, Marcelo Badaró. Greves e repressão aos sindicatos no Rio de Janeiro - 1945/1964. ANPUH – XXII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – João Pessoa, 2003.
Como citar este artigo:
CHAVES, Cintya. Um coro para a gente entoar: democracia é só votar? História da Ditadura, 19 jun. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/um-coro-para-a-gente-entoar-democracia-e-so-votar. Acesso em: [inserir data].
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