Um texto que chora sangue: o amor e o silêncio em Svetlana Aleksiévitch
Quando insultado, não revidava; quando sofria, não fazia ameaças, mas entregava-se Àquele que exerce plena justiça em seu juízo. Ele levou pessoalmente todos os nossos pecados em seu próprio corpo sobre o madeiro, a fim de que morrêssemos para os pecados e, então, pudéssemos viver para a justiça; por intermédio das suas feridas fostes curados. (Pedro 2:23-24)
Svetlana Aleksiévitch se consagrou e tem se consagrado como uma das principais escritoras do Leste Europeu no mercado editorial brasileiro. Jornalista bielorrussa ganhadora do Nobel de Literatura de 2015, logo passou a ser traduzida no país por um dos selos editoriais mais importantes do Brasil, a Companhia das Letras, apesar de já publicada em muitos países bem antes dessa data. Talvez o seu livro mais conhecido seja A guerra não tem rosto de mulher, que vem até nós pela tradução de Cecília Rosas. A obra traz um olhar feminino à “Segunda Guerra Mundial” – ou, como é chamada desde 1941 na Rússia, à “Grande Guerra Patriótica”. Vale a pena lembrar essa construção linguística sobre o acontecimento porque a autora se esforça para traçar uma imagem soviética na qual o militarismo e a violência são elementos estruturais e definidores.
A cada dia que passa, vejo mais clubes de leitura sobre a autora, com discussões emergentes e profundas sobre a miséria humana, o trauma e a repressão; mas também sobre a transcendência, a hospitalidade e a ética. Pipocam projetos e grupos de leitura coletiva, em universidades, em iniciativas independentes, em reuniões de pesquisa em tradução, sempre envolvendo diversos leitores. Entendo que essa recepção da autora se dá sobretudo porque Svetlana escreve de uma maneira sensível: ela nos atinge, nos indaga à despedida, nos convida a certo dilaceramento da experiência, mas também nos faz transbordar em amor e escuta diante do mundo. Ela não cessa de propor uma responsabilidade ética diante tanto do passado quanto do presente. Essa postura, inclusive, fez com que ela se exilasse de seu apartamento em Minsk e se refugiasse na Alemanha, em decorrência de seu posicionamento crítico e contundente em relação ao nacionalismo propagado pela Rússia na atual Guerra da Ucrânia. Mesmo dois anos e 220 páginas depois do mestrado que dediquei à autora, ainda sinto uma enorme lacuna em relação ao seu texto. Isso porque ele é composto por infinitas reticências: produz não só palavras, mas também o signo do silêncio.
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Os livros de Svetlana Aleksiévitch são baseados no recolhimento de falas e na realização de entrevistas com cidadãos das ex-repúblicas soviéticas, trabalho que começou na década de 1970, quando da existência da União Soviética, e se prolonga até hoje. Svetlana, antes de escrever, produz uma enunciação da memória, criando um ambiente favorável à fala. Não apenas escreve, propriamente, mas sobretudo escuta, promove uma presença empática, autêntica, de contato existencial e emocional. Tarefa nada fácil: escutar essas memórias de dor e sofrimento é andar de mãos dadas com o olhar de quem as conta, numa coreografia de corpos que, juntos, permitem sua enunciação. Por isso, sua literatura é a trajetória de um olhar.
Assim nos diz ela, no “diário do livro”, pequeno exercício reflexivo sobre o caráter emocional e de entrega da sua escrita, em A guerra não tem rosto de mulher (2016, p. 20-26):
Nosso cotidiano está repleto da matéria-prima da fala. Esses tijolos estão espalhados por todo lado. [...] Justo ali, na calidez da voz humana, no reflexo vivo do passado, está escondida uma alegria primitiva, e se desvela a intransponível tragicidade da vida. Seu caos e sua paixão. Seu caráter único e insondável. [...]
Construo templos a partir de nossos sentimentos… De nossos desejos, decepções. Sonhos. Daquilo que aconteceu, mas pode sumir. [...]
Sim, elas choram muito. Gritam. Depois que eu saio, tomam remédios para o coração. Chamam a “emergência”. Mas mesmo assim me pedem: “Volte. Volte sem falta. Ficamos em silêncio por tanto tempo. Quarenta anos em silêncio…” [...]
Escuto quando elas falam… Escuto quando estão caladas… Tanto as palavras quanto o silêncio são texto para mim.
Esse gesto compartilhado de abertura e de confiança – que vejo sob a ótica de um movimento – contrasta com o trauma das testemunhas entrevistadas. Não precisaríamos ir além do clássico Além do princípio do prazer(1920), de Sigmund Freud, para ver que a “compulsão à repetição” é central no texto de Aleksiévitch. Segundo Freud, existiriam três características centrais para a experiência traumática: a) a autorreprodução do trauma, que reprime a expressão da memória; b) a simbiose entre a experiência emocional e a memória traumática, o que faz com que, a cada gatilho sensorial, a pessoa retorne à memória da violência, totalizando a emoção a partir da experiência; c) a preponderância do passado sobre o presente, criando certa imobilidade para o corpo – aquilo que muitos chamaram de “um passado que não passa”.
Tendo consciência que o trauma resiste à compreensão, Svetlana bate os pés e abre os olhos a essa dor, abrindo uma temporalidade de cuidado, carinho e escuta. Sua obra parte da ideia de projetar uma reconciliação, uma reparação sobre o sofrimento, estando próxima da cura ou daquilo que, para a psicologia, poderia se chamar de uma exposição segura. Afinal de contas, a testemunha viu aquilo, sofreu uma experiência violenta, foi afetada, foi atingida por um acontecimento que a dilacera. Esse retorno ao passado, de acordo com a ética clínica, deve trazer mais benefícios do que malefícios, pois tocar nossos traumas é estar de cara com nossos fantasmas, nossos demônios recalcados, nossos arquétipos. Olhar essa sombra de frente é também enfrentá-la. Enquanto experiência de tempo, a literatura de Aleksiévitch agiria como uma espécie de sepultamento narrativo, para lembrarmos a célebre concepção de Michel de Certeau em A escrita da história (1975), denunciando esse passado como passado, aceitando-o como experiência e enquanto passado.
Ela não apenas organiza posteriormente a experiência em texto, mas também prepara uma presença de abertura para a exposição desses traumas. Antes de escritora, Svetlana é uma cuidadora. Se enxergarmos a questão pelas lentes de Jacques Derrida em Adeus a Emmanuel Lévinas (1996), a figura da escritora seria alguém que oferece o seu corpo como morada, como acolhimento biográfico, dotando as testemunhas de reconhecimento e validação. Entre semelhanças e diferenças em relação aos psicólogos clínicos, Svetlana recebe o trauma nos seus olhos, assim como oferece o seu olhar como espelho. “Trata-se sobretudo de fazer passar a palavra, lá onde as palavras nos faltam”, nos diz Derrida sobre o discurso de retorno à comunidade ferida: “falar diretamente, dirigir-se diretamente ao outro, e falar ao outro que amamos e admiramos antes de falar dele”.
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Uma das cenas mais marcantes de A guerra não tem rosto de mulher é o relato de uma enfermeira durante a Segunda Guerra. Numa situação de trincheiras entre o Exército Vermelho e os nazistas, um soviético é atingido no meio das trincheiras e cai no chão. Vendo a situação, a enfermeira soviética vai ao seu encontro, rastejando em meio aos tiros. Ao chegar lá, percebe que o soldado foi atingido por uma granada e teve o ombro quase totalmente decepado, preso só por um tendão ou um tecido semelhante. Sem o seu alicate, que caiu no meio do caminho, a enfermeira rasga o tendão com o dente para carregar o soldado até o lado seguro – retorná-lo ao cuidado do seu lado, e depois costurar aquele corpo dilacerado. Ao mesmo tempo ato de bravura e de amor, a enfermeira coloca à prova seu corpo para salvar o corpo de seu companheiro.
O que dizer, então, de um povoado em meio à Segunda Guerra que fora obrigado a ver enforcamentos dos partisans soviéticos sem derramar uma lágrima diante dos nazistas? Ou então de pastores alemães dilacerando crianças soviéticas em meio ao caos e à violência generalizada da guerra? Leiamos um relato de As últimas testemunhas (2018, p. 78):
Enforcaram minha prima… O marido dela era comandante de um destacamento partisan, e ela estava grávida. Alguém delatou para os alemães, eles vieram. Mandaram todos para a praça. Ordenaram que ninguém chorasse. Ao lado do soviete rural crescia uma árvore alta, eles levaram o cavalo para lá. Minha prima estava de pé sobre o trenó… Ela tinha uma trança longa… Fizeram a forca, ela tirou a trança. O cavalo arrancou com o trenó, ela começou a girar… As mulheres começaram a gritar… Gritavam sem lágrimas, gritavam só com a voz. Não permitiam chorar. Quer gritar, grite, mas não chore, não lamente. Chegavam perto de quem estava chorando e matavam. Adolescentes de dezesseis, dezessete anos, mataram com um tiro. Estavam chorando.
Podemos lembrar ainda uma outra cena de As últimas testemunhas, quando uma mãe narra seu bebê pegando uma granada no chão e brincando com o objeto, segundos antes de explodir a si própria. Assim nos diz a testemunha Dima Sufrankov (2018, p. 67):
Depois da guerra eu tinha medo de ferro. Se via um estilhaço, tinha medo que explodisse. A filha da vizinha tinha três anos e dois meses… Gravei na memória… A mãe repetia sobre o caixão dela: “Três anos e dois meses… Três anos e dois meses…”. Ela tinha achado uma granada na mão. E começou a embalar, feito uma boneca. Enrolou nuns trapos e embalava. Uma granada é pequena como um brinquedo, só que pesada. A mãe não conseguiu correr a tempo…
Essas imagens, que compõem uma topografia do horror, demonstram grandes atrocidades da humanidade. Somos então interrogados com a grande questão: o que Svetlana produz em nós com esses relatos? Dito de outra forma, ela produz um silêncio que não se deixa preencher. A transcendência – ou a reparação – em relação ao evento traumático se dá, precisamente, pelo amor, que cria uma morada compartilhada para um rosto que nos olha, um rosto para o qual olhamos e no qual somos refletidos – trata-se de uma questão de reconhecimento, como talvez dissesse Judith Butler ou Didi-Huberman. Um texto que precisa a distância em relação a essa memória, entendendo a sua atualidade intrusiva, ajudando a delimitar: isso é passado e me pertence apenas como passado, e não mais como uma assombração involuntária que persegue meus afetos presentes. Ser invadido por esse passado machuca, e é por essa dor que a abertura modifica a experiência traumática do tempo.
Emprestar o olhar à emergência desse trauma como linguagem e, depois, à tradução textual dessas imagens de dor é um esforço doloroso (as problemáticas em torno da autoria do seu texto podem ser acessadas aqui, em texto recente). Ao mesmo passo em que isso constitui a qualidade cinematográfica e performática da literatura de Aleksiévitch, isso também dota seu ofício de uma linguagem do adoecimento. Para Gilles Deleuze, o escritor seria aquele que escutou coisas inaudíveis em seu horror, e grita essas vozes ao mundo por se sentir também responsável por elas: “do que viu e ouviu, o escritor regressa com os olhos vermelhos, com os tímpanos perfurados”, nos diz Deleuze em Crítica e clínica (1993). Talvez Aleksiévitch esteja ao lado de Jesus Cristo, pois, assim como ele, lava os pecados da humanidade em seu próprio sangue, se entregando à humanidade como quem se sacrifica como ato de bondade e resistência. Não é à toa que há um forte sentido religioso em seu texto: – poderíamos também traduzir o título de seu livro Vozes de Tchérnobil como Oração de Tchérnobil (Чернобыльская молитва), pois molitva (a segunda palavra, um substantivo), é oração, prece.
Ao fim, a autora carrega um enorme fardo atrás e diante de si por ser a responsável por tornar essa memória pública, se esforçando para ser essa espécie de porta-voz soviética desde a década de 1980. Svetlana prolonga a interrogação de seu espírito para nós, leitores, por meio de um silêncio ético e reticente. O acabamento desse símbolo se dá principalmente a partir de sua incompletude moral: o que responder quando a morte toca o corpo? Retornando dos portões da dor e do inferno, com que palavras tocamos o coração de quem aqui, na vida, permanece? Em As últimas testemunhas, há uma média de seis reticências por página. É como se autora, testemunhas e leitores fossem convidados a se deslocar do terreno da palavra em direção à experiência do silêncio reticente. O seu próprio texto é uma experiência de luto, ou o resultado de um trabalho sobre o luto das testemunhas. Ela empresta seu corpo, seu olhar, sua alma como lugar de segurança. Ao fazer aparecer corpos em seus próprios desaparecimentos, violações, negações e ausências, ela cria uma nova experiência narrativa no seu próprio texto, por meio de uma engrenagem – religiosa, de gênero e antissoviética – que funciona por meio do encontro entre testemunhas e leitores. O próprio texto acaba funcionando como um espaço de alteridade, tornando os leitores próximos àquilo que Paul Ricoeur definiu como “testemunhas em segundo grau”, quando se referiu aos leitores de literaturas de testemunho.
“Depois da morte, quem é que ouve?”, se pergunta Marina Tikhónovna, em O fim do homem soviético. Como se pudéssemos responder: somos nós quem a escutaremos quando seu corpo perecer com o tempo. Entregues ao texto, nós a escutamos, mantemo-nos junto a ela, em prece, em oração, em amor, lágrima, promessa e esperança.
Como citar este artigo:
PORTAL, João Camilo. Um texto que chora sangue: o amor e o silêncio em Svetlana Aleksiévitch. História da Ditadura, 17 dez. 2023. Disponível em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/um-texto-que-chora-sangue-o-amor-e-o-silencio-em-svetlana. Acesso em: [inserir data].
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