Um texto que chora sangue: o amor e o silĆŖncio em Svetlana AleksiĆ©vitch
- JoaĢo Camilo Portal
- 18 de dez. de 2023
- 8 min de leitura
Quando insultado, nĆ£o revidava; quando sofria, nĆ£o fazia ameaƧas, mas entregava-se Ćquele que exerce plena justiƧa em seu juĆzo. Ele levou pessoalmente todos os nossos pecados em seu prĆ³prio corpo sobre o madeiro, a fim de que morrĆŖssemos para os pecados e, entĆ£o, pudĆ©ssemos viver para a justiƧa; por intermĆ©dio das suas feridas fostes curados. (Pedro 2:23-24)
Svetlana AleksiĆ©vitch se consagrou e tem se consagrado como uma das principais escritoras do Leste Europeu no mercado editorial brasileiro. Jornalista bielorrussa ganhadora do Nobel de Literatura de 2015, logo passou a ser traduzida no paĆs por um dos selos editoriais mais importantes do Brasil, a Companhia das Letras, apesar de jĆ” publicada em muitos paĆses bem antes dessa data. Talvez o seu livro mais conhecido seja A guerra nĆ£o tem rosto de mulher, que vem atĆ© nĆ³s pela traduĆ§Ć£o de CecĆlia Rosas. A obra traz um olhar feminino Ć āSegunda Guerra Mundialā ā ou, como Ć© chamada desde 1941 na RĆŗssia, Ć āGrande Guerra PatriĆ³ticaā. Vale a pena lembrar essa construĆ§Ć£o linguĆstica sobre o acontecimento porque a autora se esforƧa para traƧar uma imagem soviĆ©tica na qual o militarismo e a violĆŖncia sĆ£o elementos estruturais e definidores.

A cada dia que passa, vejo mais clubes de leitura sobre a autora, com discussƵes emergentes e profundas sobre a misĆ©ria humana, o trauma e a repressĆ£o; mas tambĆ©m sobre a transcendĆŖncia, a hospitalidade e a Ć©tica. Pipocam projetos e grupos de leitura coletiva, em universidades, em iniciativas independentes, em reuniƵes de pesquisa em traduĆ§Ć£o, sempre envolvendo diversos leitores. Entendo que essa recepĆ§Ć£o da autora se dĆ” sobretudo porque Svetlana escreve de uma maneira sensĆvel: ela nos atinge, nos indaga Ć despedida, nos convida a certo dilaceramento da experiĆŖncia, mas tambĆ©m nos faz transbordar em amor e escuta diante do mundo. Ela nĆ£o cessa de propor uma responsabilidade Ć©tica diante tanto do passado quanto do presente. Essa postura, inclusive, fez com que ela se exilasse de seu apartamento em Minsk e se refugiasse na Alemanha, em decorrĆŖncia de seu posicionamento crĆtico e contundente em relaĆ§Ć£o ao nacionalismo propagado pela RĆŗssia na atual Guerra da UcrĆ¢nia. Mesmo dois anos e 220 pĆ”ginas depois do mestrado que dediquei Ć autora, ainda sinto uma enorme lacuna em relaĆ§Ć£o ao seu texto. Isso porque ele Ć© composto por infinitas reticĆŖncias: produz nĆ£o sĆ³ palavras, mas tambĆ©m o signo do silĆŖncio.
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Os livros de Svetlana AleksiĆ©vitch sĆ£o baseados no recolhimento de falas e na realizaĆ§Ć£o de entrevistas com cidadĆ£os das ex-repĆŗblicas soviĆ©ticas, trabalho que comeƧou na dĆ©cada de 1970, quando da existĆŖncia da UniĆ£o SoviĆ©tica, e se prolonga atĆ© hoje. Svetlana, antes de escrever, produz uma enunciaĆ§Ć£o da memĆ³ria, criando um ambiente favorĆ”vel Ć fala. NĆ£o apenas escreve, propriamente, mas sobretudo escuta, promove uma presenƧa empĆ”tica, autĆŖntica, de contato existencial e emocional. Tarefa nada fĆ”cil: escutar essas memĆ³rias de dor e sofrimento Ć© andar de mĆ£os dadas com o olhar de quem as conta, numa coreografia de corpos que, juntos, permitem sua enunciaĆ§Ć£o. Por isso, sua literatura Ć© a trajetĆ³ria de um olhar.
Assim nos diz ela, no ādiĆ”rio do livroā, pequeno exercĆcio reflexivo sobre o carĆ”ter emocional e de entrega da sua escrita, em A guerra nĆ£o tem rosto de mulher (2016, p. 20-26):
Nosso cotidiano estĆ” repleto da matĆ©ria-prima da fala. Esses tijolos estĆ£o espalhados por todo lado. [...] Justo ali, na calidez da voz humana, no reflexo vivo do passado, estĆ” escondida uma alegria primitiva, e se desvela a intransponĆvel tragicidade da vida. Seu caos e sua paixĆ£o. Seu carĆ”ter Ćŗnico e insondĆ”vel. [...]
Construo templos a partir de nossos sentimentosā¦ De nossos desejos, decepƧƵes. Sonhos. Daquilo que aconteceu, mas pode sumir. [...]
Sim, elas choram muito. Gritam. Depois que eu saio, tomam remĆ©dios para o coraĆ§Ć£o. Chamam a āemergĆŖnciaā. Mas mesmo assim me pedem: āVolte. Volte sem falta. Ficamos em silĆŖncio por tanto tempo. Quarenta anos em silĆŖncioā¦ā [...]
Escuto quando elas falamā¦ Escuto quando estĆ£o caladasā¦ Tanto as palavras quanto o silĆŖncio sĆ£o texto para mim.

Esse gesto compartilhado de abertura e de confianƧa ā que vejo sob a Ć³tica de um movimento ā contrasta com o trauma das testemunhas entrevistadas. NĆ£o precisarĆamos ir alĆ©m do clĆ”ssico AlĆ©m do princĆpio do prazer(1920), de Sigmund Freud, para ver que a ācompulsĆ£o Ć repetiĆ§Ć£oā Ć© central no texto de AleksiĆ©vitch. Segundo Freud, existiriam trĆŖs caracterĆsticas centrais para a experiĆŖncia traumĆ”tica: a) a autorreproduĆ§Ć£o do trauma, que reprime a expressĆ£o da memĆ³ria; b) a simbiose entre a experiĆŖncia emocional e a memĆ³ria traumĆ”tica, o que faz com que, a cada gatilho sensorial, a pessoa retorne Ć memĆ³ria da violĆŖncia, totalizando a emoĆ§Ć£o a partir da experiĆŖncia; c) a preponderĆ¢ncia do passado sobre o presente, criando certa imobilidade para o corpo ā aquilo que muitos chamaram de āum passado que nĆ£o passaā.
Tendo consciĆŖncia que o trauma resiste Ć compreensĆ£o, Svetlana bate os pĆ©s e abre os olhos a essa dor, abrindo uma temporalidade de cuidado, carinho e escuta. Sua obra parte da ideia de projetar uma reconciliaĆ§Ć£o, uma reparaĆ§Ć£o sobre o sofrimento, estando prĆ³xima da cura ou daquilo que, para a psicologia, poderia se chamar de uma exposiĆ§Ć£o segura. Afinal de contas, a testemunha viu aquilo, sofreu uma experiĆŖncia violenta, foi afetada, foi atingida por um acontecimento que a dilacera. Esse retorno ao passado, de acordo com a Ć©tica clĆnica, deve trazer mais benefĆcios do que malefĆcios, pois tocar nossos traumas Ć© estar de cara com nossos fantasmas, nossos demĆ“nios recalcados, nossos arquĆ©tipos. Olhar essa sombra de frente Ć© tambĆ©m enfrentĆ”-la. Enquanto experiĆŖncia de tempo, a literatura de AleksiĆ©vitch agiria como uma espĆ©cie de sepultamento narrativo, para lembrarmos a cĆ©lebre concepĆ§Ć£o de Michel de Certeau em A escrita da histĆ³ria (1975), denunciando esse passado como passado, aceitando-o como experiĆŖncia e enquanto passado.

Ela nĆ£o apenas organiza posteriormente a experiĆŖncia em texto, mas tambĆ©m prepara uma presenƧa de abertura para a exposiĆ§Ć£o desses traumas. Antes de escritora, Svetlana Ć© uma cuidadora. Se enxergarmos a questĆ£o pelas lentes de Jacques Derrida em Adeus a Emmanuel LĆ©vinas (1996), a figura da escritora seria alguĆ©m que oferece o seu corpo como morada, como acolhimento biogrĆ”fico, dotando as testemunhas de reconhecimento e validaĆ§Ć£o. Entre semelhanƧas e diferenƧas em relaĆ§Ć£o aos psicĆ³logos clĆnicos, Svetlana recebe o trauma nos seus olhos, assim como oferece o seu olhar como espelho. āTrata-se sobretudo de fazer passar a palavra, lĆ” onde as palavras nos faltamā, nos diz Derrida sobre o discurso de retorno Ć comunidade ferida: āfalar diretamente, dirigir-se diretamente ao outro, e falar ao outro que amamos e admiramos antes de falar deleā.
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Uma das cenas mais marcantes de A guerra nĆ£o tem rosto de mulher Ć© o relato de uma enfermeira durante a Segunda Guerra. Numa situaĆ§Ć£o de trincheiras entre o ExĆ©rcito Vermelho e os nazistas, um soviĆ©tico Ć© atingido no meio das trincheiras e cai no chĆ£o. Vendo a situaĆ§Ć£o, a enfermeira soviĆ©tica vai ao seu encontro, rastejando em meio aos tiros. Ao chegar lĆ”, percebe que o soldado foi atingido por uma granada e teve o ombro quase totalmente decepado, preso sĆ³ por um tendĆ£o ou um tecido semelhante. Sem o seu alicate, que caiu no meio do caminho, a enfermeira rasga o tendĆ£o com o dente para carregar o soldado atĆ© o lado seguro ā retornĆ”-lo ao cuidado do seu lado, e depois costurar aquele corpo dilacerado. Ao mesmo tempo ato de bravura e de amor, a enfermeira coloca Ć prova seu corpo para salvar o corpo de seu companheiro.
O que dizer, entĆ£o, de um povoado em meio Ć Segunda Guerra que fora obrigado a ver enforcamentos dos partisans soviĆ©ticos sem derramar uma lĆ”grima diante dos nazistas? Ou entĆ£o de pastores alemĆ£es dilacerando crianƧas soviĆ©ticas em meio ao caos e Ć violĆŖncia generalizada da guerra? Leiamos um relato de As Ćŗltimas testemunhas (2018, p. 78):
Enforcaram minha primaā¦ O marido dela era comandante de um destacamento partisan, e ela estava grĆ”vida. AlguĆ©m delatou para os alemĆ£es, eles vieram. Mandaram todos para a praƧa. Ordenaram que ninguĆ©m chorasse. Ao lado do soviete rural crescia uma Ć”rvore alta, eles levaram o cavalo para lĆ”. Minha prima estava de pĆ© sobre o trenĆ³ā¦ Ela tinha uma tranƧa longaā¦ Fizeram a forca, ela tirou a tranƧa. O cavalo arrancou com o trenĆ³, ela comeƧou a girarā¦ As mulheres comeƧaram a gritarā¦ Gritavam sem lĆ”grimas, gritavam sĆ³ com a voz. NĆ£o permitiam chorar. Quer gritar, grite, mas nĆ£o chore, nĆ£o lamente. Chegavam perto de quem estava chorando e matavam. Adolescentes de dezesseis, dezessete anos, mataram com um tiro. Estavam chorando.
Podemos lembrar ainda uma outra cena de As Ćŗltimas testemunhas, quando uma mĆ£e narra seu bebĆŖ pegando uma granada no chĆ£o e brincando com o objeto, segundos antes de explodir a si prĆ³pria. Assim nos diz a testemunha Dima Sufrankov (2018, p. 67):
Depois da guerra eu tinha medo de ferro. Se via um estilhaƧo, tinha medo que explodisse. A filha da vizinha tinha trĆŖs anos e dois mesesā¦ Gravei na memĆ³riaā¦ A mĆ£e repetia sobre o caixĆ£o dela: āTrĆŖs anos e dois mesesā¦ TrĆŖs anos e dois mesesā¦ā. Ela tinha achado uma granada na mĆ£o. E comeƧou a embalar, feito uma boneca. Enrolou nuns trapos e embalava. Uma granada Ć© pequena como um brinquedo, sĆ³ que pesada. A mĆ£e nĆ£o conseguiu correr a tempoā¦
Essas imagens, que compƵem uma topografia do horror, demonstram grandes atrocidades da humanidade. Somos entĆ£o interrogados com a grande questĆ£o: o que Svetlana produz em nĆ³s com esses relatos? Dito de outra forma, ela produz um silĆŖncio que nĆ£o se deixa preencher. A transcendĆŖncia ā ou a reparaĆ§Ć£o ā em relaĆ§Ć£o ao evento traumĆ”tico se dĆ”, precisamente, pelo amor, que cria uma morada compartilhada para um rosto que nos olha, um rosto para o qual olhamos e no qual somos refletidos ā trata-se de uma questĆ£o de reconhecimento, como talvez dissesse Judith Butler ou Didi-Huberman. Um texto que precisa a distĆ¢ncia em relaĆ§Ć£o a essa memĆ³ria, entendendo a sua atualidade intrusiva, ajudando a delimitar: isso Ć© passado e me pertence apenas como passado, e nĆ£o mais como uma assombraĆ§Ć£o involuntĆ”ria que persegue meus afetos presentes. Ser invadido por esse passado machuca, e Ć© por essa dor que a abertura modifica a experiĆŖncia traumĆ”tica do tempo.

Emprestar o olhar Ć emergĆŖncia desse trauma como linguagem e, depois, Ć traduĆ§Ć£o textual dessas imagens de dor Ć© um esforƧo doloroso (as problemĆ”ticas em torno da autoria do seu texto podem ser acessadas aqui, em texto recente). Ao mesmo passo em que isso constitui a qualidade cinematogrĆ”fica e performĆ”tica da literatura de AleksiĆ©vitch, isso tambĆ©m dota seu ofĆcio de uma linguagem do adoecimento. Para Gilles Deleuze, o escritor seria aquele que escutou coisas inaudĆveis em seu horror, e grita essas vozes ao mundo por se sentir tambĆ©m responsĆ”vel por elas: ādo que viu e ouviu, o escritor regressa com os olhos vermelhos, com os tĆmpanos perfuradosā, nos diz Deleuze em CrĆtica e clĆnica (1993). Talvez AleksiĆ©vitch esteja ao lado de Jesus Cristo, pois, assim como ele, lava os pecados da humanidade em seu prĆ³prio sangue, se entregando Ć humanidade como quem se sacrifica como ato de bondade e resistĆŖncia. NĆ£o Ć© Ć toa que hĆ” um forte sentido religioso em seu texto: ā poderĆamos tambĆ©m traduzir o tĆtulo de seu livro Vozes de TchĆ©rnobil como OraĆ§Ć£o de TchĆ©rnobil (Š§ŠµŃŠ½Š¾Š±ŃŠ»ŃŃŠŗŠ°Ń Š¼Š¾Š»ŠøŃŠ²Š°), pois molitva (a segunda palavra, um substantivo), Ć© oraĆ§Ć£o, prece.
Ao fim, a autora carrega um enorme fardo atrĆ”s e diante de si por ser a responsĆ”vel por tornar essa memĆ³ria pĆŗblica, se esforƧando para ser essa espĆ©cie de porta-voz soviĆ©tica desde a dĆ©cada de 1980. Svetlana prolonga a interrogaĆ§Ć£o de seu espĆrito para nĆ³s, leitores, por meio de um silĆŖncio Ć©tico e reticente. O acabamento desse sĆmbolo se dĆ” principalmente a partir de sua incompletude moral: o que responder quando a morte toca o corpo? Retornando dos portƵes da dor e do inferno, com que palavras tocamos o coraĆ§Ć£o de quem aqui, na vida, permanece? Em As Ćŗltimas testemunhas, hĆ” uma mĆ©dia de seis reticĆŖncias por pĆ”gina. Ć como se autora, testemunhas e leitores fossem convidados a se deslocar do terreno da palavra em direĆ§Ć£o Ć experiĆŖncia do silĆŖncio reticente. O seu prĆ³prio texto Ć© uma experiĆŖncia de luto, ou o resultado de um trabalho sobre o luto das testemunhas. Ela empresta seu corpo, seu olhar, sua alma como lugar de seguranƧa. Ao fazer aparecer corpos em seus prĆ³prios desaparecimentos, violaƧƵes, negaƧƵes e ausĆŖncias, ela cria uma nova experiĆŖncia narrativa no seu prĆ³prio texto, por meio de uma engrenagem ā religiosa, de gĆŖnero e antissoviĆ©tica ā que funciona por meio do encontro entre testemunhas e leitores. O prĆ³prio texto acaba funcionando como um espaƧo de alteridade, tornando os leitores prĆ³ximos Ć quilo que Paul Ricoeur definiu como ātestemunhas em segundo grauā, quando se referiu aos leitores de literaturas de testemunho.
āDepois da morte, quem Ć© que ouve?ā, se pergunta Marina TikhĆ³novna, em O fim do homem soviĆ©tico. Como se pudĆ©ssemos responder: somos nĆ³s quem a escutaremos quando seu corpo perecer com o tempo. Entregues ao texto, nĆ³s a escutamos, mantemo-nos junto a ela, em prece, em oraĆ§Ć£o, em amor, lĆ”grima, promessa e esperanƧa.
Como citar este artigo:
PORTAL, JoĆ£o Camilo. Um texto que chora sangue: o amor e o silĆŖncio em Svetlana AleksiĆ©vitch. HistĆ³ria da Ditadura, 17 dez. 2023. DisponĆvel em: https://www.historiadaditadura.com.br/post/um-texto-que-chora-sangue-o-amor-e-o-silencio-em-svetlana. Acesso em: [inserir data].