55 anos do golpe de 1964: por que não há nada a comemorar?
Atualizado: 20 de dez. de 2022
Há muita desinformação no debate público sobre o golpe e a ditadura. Um dos fatores que contribuiu para isso foi a forma pactuada como se deu a transição para a democracia, a partir de fins dos anos de 1970, sem esclarecimento adequado e justiça diante de crimes e plurais violações aos direitos humanos. Isso quer dizer que, a despeito de algumas ações importantes mais recentes, como o estabelecimento da Comissão Nacional da Verdade e de comissões de anistia, a admissão de abusos pelo Estado brasileiro no tempo de tutela dos militares foi incompleta, o que contribuiu para que a condenação da ditadura não se tornasse suficientemente aceita. Outro fator que deve ser considerado são os usos políticos do passado, como ocorre nas estranhas homenagens de quem enaltece o golpe supostamente salvador. Nelas, há distorção de fatos e são ignoradas evidências, aumentando a confusão.
Nós, historiadores, estamos habituados a constatar a complexidade dos processos históricos, em geral, repletos de assimetrias e contradições que se revelam de forma especialmente perturbadora em episódios decisivos, como o que completa 55 anos agora. Tal característica não deve inibir a tarefa de construção de conhecimento científico sobre o passado. Em um cenário de conflitos fortemente enraizados no agora – algo que meus colegas professores facilmente reconheceriam como uma das marcas da chamada História do Tempo Presente – afirma-se renovada oportunidade de qualificar a discussão a partir da argumentação historiográfica e daquilo que se evidencia nos documentos que consultamos nos arquivos.
Neste ano de 2019, primeiro do mandato de um presidente que relativizou repetidas vezes o conhecimento sobre o passado da ditadura e ofendeu vítimas, animando investidas de clara inspiração autoritária, o esforço de elencar fatos sobre aquele passado, e afirmá-lo diante das informações falsas, surge ainda mais relevante do que já fora. Evidentemente, não há como esgotar assunto de tamanha complexidade neste texto. Ainda assim, arrisco, a seguir, uma contribuição modesta motivada pela efeméride sombria.
Fato 1: Deposição de João Goulart foi um golpe de Estado. Não um contragolpe ou revolução.
Os historiadores, grosso modo, costumam chamar de golpe de Estado a interrupção brusca de determinada governança ou ordem constitucional. Golpes implicam, via de regra, violações dos padrões vigentes e atos de força. A deposição de João Goulart teve todos esses requisitos, foi um golpe de Estado clássico, apesar do esforço de alguns militares em dar-lhe uma feição aparentemente democrática. Goulart sofreu a ameaça de tropas que partiram da cidade de Juiz de Fora, lideradas pelo general Olímpio Mourão Filho, além de pressões de outros apoiadores.
Não é possível chamá-lo de contragolpe, como fizeram alguns militares e alguns historiadores, pois isso exigira comprovar que um golpe de outra natureza estava em curso. E não há qualquer tipo de evidência de que o presidente João Goulart planejava um golpe para se manter no poder ou algo semelhante.
É igualmente equivocado chamar de “revolução”, pois os historiadores utilizam esse termo para caracterizar processos históricos que significaram profunda alteração na organização social, econômica, cultural e política de uma sociedade, como no caso da Revolução Francesa ou da Revolução Russa. Não foi o que ocorreu após o golpe de 1964: o Brasil era capitalista e continuou capitalista, era uma República e seguiu sendo. O que mudaram foram os grupos no comando do Estado.
Fato 2: Um golpe civil-militar.
Dizemos que o golpe de 1964 foi civil-militar pois de seu planejamento e execução participaram, efetivamente, lideranças civis e militares. Além do general Olímpio Mourão Filho, que tomou a iniciativa de marchar para depor o presidente, outros importantes generais se rebelaram em seguida, como o general Costa e Silva. No campo civil, lideranças como Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais, e Carlos Lacerda, governador da Guanabara, chegaram a se utilizar de suas forças policiais para garantir o sucesso do golpe. Lacerda foi visto empunhando uma metralhadora no Palácio Guanabara. Magalhães Pinto estava em constante contato com os estadunidenses e responderia por um governo provisório em uma eventual invasão dos EUA.
Fato 3: apoio ao golpe não significava apoio à ditadura ou a um governo de militares.
Aqueles que defendem o legado da ditadura costumam sustentar que “o povo pediu” a participação dos militares na retirada do presidente João Goulart. Para isso, usam imagens das “Marchas da Vitória” e das “Marchas da Família, com Deus, pela Liberdade”, além de outros eventos que comemoraram a deposição de Jango. De fato, setores da sociedade brasileira apoiaram a saída do presidente com ação militar. No entendimento de muitos época, como é o caso da expressiva maioria dos jornais da grande imprensa – como O Globo, Jornal do Brasil ou Correio da Manhã – os fardados estavam agindo para garantir a democracia. O problema nessa argumentação é que ela não destaca o fato de que grande parte daqueles que apoiaram a ação golpista esperavam votar nas eleições presidenciais previstas para 1965. Dito de outra maneira: queriam a saída de Jango, mas não uma ditadura, que acabou sendo imposta. Depois de 1960, os brasileiros só votariam para presidente em 1989. E elegeram Fernando Collor.
Fato 4: João Goulart não era comunista, nem impopular.
Desde 1946, o Partido Comunista Brasileiro estava na ilegalidade, mesmo o país vivendo em uma democracia. Várias de suas lideranças, como Luís Carlos Prestes, viviam sob o risco de serem importunados pelas polícias, sempre sob a acusação de que tramavam uma revolução comunista. Havia grupos de esquerda no Brasil que, de fato, defendiam uma revolução socialista. Algo bem diferente é dizer que tramavam sua organização ou concretamente tinham condições para tal.
Não há qualquer evidência documental de que João Goulart participava desse tipo de planejamento ou se articulava com grupos que o faziam. Pelo contrário, por toda sua vida pública, o ex-presidente manteve postura legalista. Jango era uma importante liderança do trabalhismo, tradição de esquerda de caráter predominantemente reformista, isto é, não-revolucionária.
Outro aspecto que deve ser frisado é o fato de que Jango não caiu porque era impopular. Pesquisas no fundo documental do IBOPE levadas por historiadores, como Rodrigo Patto Sá Motta, mostram que o líder trabalhista sustentava algo em torno de 60% de aprovação do governo (considerado ótimo, bom ou regular) índice bastante superior, por exemplo aos sustentados por Michel Temer ou pelo atual presidente. As pesquisas ainda mostravam que era um forte candidato para 1965, junto a Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda.
Fato 5: A bandeira anticomunista foi fundamental para o sucesso do golpe.
Historiadores ilustram o fato de que o anticomunismo no Brasil é mais antigo que o próprio comunismo. Há registros em atas que datam do século XIX com discursos de políticos contra o “espectro” vermelho que ganhava força na Europa. Depois da tentativa de golpe em 1935, o anticomunismo ganhou bastante força e foi diversas vezes utilizado como pretexto para golpes, como ocorreu em 1937 (por meio de documentos falsos elaborado por Olímpio Mourão Filho, que daria o golpe anos depois) e 1964. No contexto da Guerra Fria e da bipolarização entre o bloco de países capitalistas e o bloco de países comunistas, tal sentimento ganhou força. Em especial após 1961, quando foi selada a aliança entre Cuba e URSS e com o avanço de doutrinas militares que previam “infiltração comunista” em países capitalistas. No Brasil, isso também ocorreu. Empresários e latifundiários temiam perder suas riquezas para uma revolução socialista, a Igreja Católica temia o “comunismo ateu” e muitos militares acreditavam que a agitação comunista era capaz de quebrar a hierarquia das Forças Armadas. Esse conjunto de expectativas e aflições são componente importante para entender o golpe e por que ele deu certo.
Fato 6: Desde o golpe, houve mortes, prisões arbitrárias, tortura e censura. A ditadura começou no golpe.
Há uma ideia falsa de que o Brasil teria sofrido uma ditadura mais leve, espécie de “ditabranda”. Com isso, alguns afirmam que a ditadura só teria começado em 1968, depois do AI-5, o “golpe dentro do golpe”. Essas ideias todas carecem de comprovação. O historiador Carlos Fico, por exemplo, destaca o nome de quatro pessoas que morreram já na ocasião do golpe: Jonas Barros, Ivan Aguiar, Ari Cunha e Labib Abduch. Há também conhecidos casos de tortura já nas primeiras horas, como a que sofreu o comunista Gregório Bezerra, preso arbitrariamente e arrastado pelas ruas de Recife. Alguns jornais já deixaram de circular em 1º de abril, devido a batidas policiais. Todas essas características terríveis da ditadura já estavam presentes nas primeiras horas do golpe. E se aprofundaram nos anos seguintes.
Fato 7: Ditadura, não guerra revolucionária (A teoria dos dois demônios).
Outro argumento comum na fala de quem defende a ditadura é o de que país vivia uma guerra que tinha, portanto, “dois lados”, o dos grupos de esquerda, especialmente da chamada luta armada, e o governo. Nesse cenário de “combate à guerra revolucionária”, todos os meios seriam plausíveis para a vitória. Afinal, é guerra, não é mesmo? Esse argumento é conhecido pelos historiadores como “teoria dos dois demônios” e é essencialmente falacioso. Isso porque ele esconde a profunda diferença em equipamento, pessoal e estrutura entre os dois polos em oposição. Na prática, durante a ditadura, de um lado estava o Estado brasileiro, munido de poderosos artifícios autoritários e das Forças Armadas e, do outro, algumas centenas de pessoas armadas e treinadas precariamente, vivendo na clandestinidade. Admitir uma guerra nesses termos é distanciar-se brutalmente dos fatos.
Fato 8: A atuação dos EUA teve peso relevante no resultado do golpe (Operação Brother Sam).
Há quem acredite que “o golpe começou em Washington” ou que a articulação do golpe foi obra exclusiva do imperialismo dos EUA. Precisamos ser cuidadosos diante dessas afirmações. O golpe foi planejado e executado por atores nacionais. O que já se conseguiu comprovar é que havia uma força-tarefa militar no Atlântico Sul pronta para invadir o Brasil em caso de falha do golpe, a chamada “operação Brother Sam”. O destacamento das Forças Armadas ainda poderia fornecer combustíveis e apoio logístico aos golpistas, caso necessário. O historiador Jorge Ferreira afirma que a informação da existência de tal operação, que teria chegado a Jango por San Tiago Dantas, teria sido decisiva para o presidente optar por não resistir ao golpe. Sabemos apenas a decisão que Jango tomou.
Fato 9: Membros do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal tiveram atuação importante no golpe.
Avançadas as tropas e com diversos destacamentos militares sublevados, o presidente João Goulart encontrava-se no sul do país na madrugada de 2 de abril, ainda em território nacional. Nessa ocasião, e diante de um plenário dividido entre aplausos e vaias, o senador Auro de Moura Andrade declarou vaga a presidência da República. Tal declaração foi indevida, visto que Jango estava no Brasil. Trata-se da vertente parlamentar do golpe, que garantiu seu prosseguimento. Também o presidente do Supremo Tribunal Federal da época, o ministro Ribeiro da Costa, contribuiu para o avanço do ritual que garantiu a posse (ilegal) do então presidente da Câmara, Pascoal Ranieri Mazzili, e a convocação de eleições indiretas, que terminariam por indicar o Marechal Castelo Branco à Presidência, completando o golpe.
Fato 10: Em sua complexidade, um dos eventos-chave da história recente brasileira
João Goulart foi deposto por um conjunto de motivos que só podem ser entendidos no contexto em que ocorreram, de Guerra Fria. A muitos interessava sua queda. Poucos, no entanto, tinham um projeto claro de país que a isso se seguiria. Nesse cenário incerto, um grupo de radicais se impôs e garantiu a perpetuação de um governo que não havia sido eleito.
O golpe de 1964 foi um episódio extremamente revelador da crença autoritária que iludiu (e ilude) muitos segmentos da sociedade brasileira. Refiro-me à ideia comum de que há tantos erros na formação do nosso país que somente por meio de uma intervenção brusca, violenta e impositiva de uma liderança centralizadora se pode superá-los. Problemas como a corrupção, o atraso econômico ou a falta de educação só seriam deixados para trás pelas mãos de um líder austero.
Na prática, a ditadura militar foi catastrófica para todas as instâncias da vida brasileira. Por fim, beneficiou a poucos e foi um período em que as principais decisões foram tomadas em prol das elites, e somente delas, o que é uma triste – e recorrente – marca de nossa história.
Diego Knack é historiador, professor de História e editor do site História da Ditadura.
Para saber mais:
René Dreifuss. 1964: a conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981. Lucília de Almeida Neves Delgado; Jorge Ferreira. O Brasil Republicano. O tempo da experiência democrática, volume 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
Carlos Fico. O golpe de 1964: momentos decisivos. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014.
_______. O grande irmão: da Operação Brother Sam aos anos de chumbo. O governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Rodrigo Patto Motta. The 1964 coup and dictatorship in opinion polls. Tempo. Niterói, v.20, p.1-21.
Como citar este artigo:
KNACK, Diego. “É preciso não esquecer”: 53 anos do golpe de 1964. In: História da Ditadura – novas perspectivas. Disponível em: http://historiadaditadura.com.br/destaque/55-anos-golpe-1964/. Publicado em: 1 Abr. 2019. Acesso: [informar data].
Crédito da imagem destacada: Concentração para o Comício das Reformas no Rio de Janeiro em março de 1964. Arquivo Nacional, Correio da Manhã, PH FOT 05610 004.
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